A “LEVEZA” PARA CECÍLIA MEIRELES

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LEVEZA
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                                                        Leve é o pássaro:
                                                        e sua sombra voante,
                                                        mais leve.
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                                                        E a cascata aérea
                                                        de sua garganta,
                                                        mais leve.
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                                                        E o que lembra, ouvindo-se
                                                        deslizar seu canto,
                                                        mais leve.
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                                                        E o desejo rápido
                                                        desse antigo instante,
                                                        mais leve.
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                                                        E a fuga invisível
                                                        do amargo passante,
                                                        mais leve.
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                   (MEIRELES, Cecília. In: Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.)
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Que as imagens de pássaros que utilizei para ilustrar esta reflexão não iludam: nem só de pássaros fala o poema de Cecília. A partir, entretanto, da representação do pássaro flagrado em pleno voo – e de sua leveza – a escritora conduz seu leitor à observação de outras imagens do imponderável, colocando-o diante de reflexões sobre o mistério da vida e da passagem do tempo, temas centrais de seu imaginário e de sua poética.
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                                                         Leve é o pássaro:
                                                         e sua sombra voante,
                                                         mais leve.
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Mais leve que o pássaro (já leve) é a sua “sombra voante”: o rápido borrão com as cores de suas asas deixado no trecho do céu ocupado pelo voo.
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                                                        E a cascata aérea
                                                        de sua garganta,
                                                        mais leve.
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Mais leve que a “sombra voante” do pássaro – levíssima – é seu canto metaforizado como “cascata” numa clara alusão aos rumores de cascatas e gorjeios, embora o rumor da cascata se relacione à água e à proximidade com a terra, ao passo que o canto é, por excelência, aéreo, ainda mais quando liberto nas alturas do voo.

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.                                                                    .   E o que lembra, ouvindo-se
                                                       deslizar seu canto,
                                                       mais leve.
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Nesse ponto do poema já está o leitor impressionado (está?) com a espécie de leveza de que trata a poetisa. Trata-se, realmente, do peso do que não se pode pesar – do imponderável – como acima distingui. Entretanto, mais leve que o pássaro, que sua sombra ou seu canto é o que esse canto, ouvido, faz lembrar ao eu-lírico (a voz que canta no poema) e ao leitor dos versos.

 

 

 

Quem já não ouviu um pássaro? Quem já se lembrou de algo que julgava esquecido ao ouvir tal canto?  É justamente essa memória perdida (“o que lembra”) que Cecília diz ser mais leve do que tudo a que até então se referiu.
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E o desejo rápido

desse antigo instante,

mais leve.

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Quanto pesa o desejo? E o desejo que vem e se esvai – rápido – quanto pesa? E aquele, de um instante perdido, há como pesar? São leves, segundo Cecília, mais que o pássaro, sua sombra e seu canto, mais que aquilo de que se lembra ao ouvir o pássaro. Levíssimo é o desejo do instante recuperado no momento do canto.

 

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  E a fuga invisível
                                                                do amargo passante,
                                                                mais leve.
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Mais leve que tudo, entretanto, segundo a poetisa, é a “fuga invisível do amargo passante” que, seguindo à interpretação que venho dando aos versos, pode ser entendido como o “desejo rápido” ou como o próprio pássaro –    “amargo” por suscitar esquecidas lembranças.

O refrão – “mais leve” – ao invés de deixar pesado o texto (pela repetição), por enfatizar justamente a leveza faz com que a cada leitura se amplie a percepção do leitor a respeito do imponderável da existência. Nesse sentido, colabora o jogo entre as vogais /é/ e /e/, tônica e átona, forte e fraca – quase um /i/ a segunda delas – a deixar também mais leve a declamação do poema. 

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As imagens utilizadas neste post me foram enviadas por uma amiga, via e-mail, sem identificação de autoria, reunidas numa coletânea intitulada “Deus usou qual tinta?”
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Beijo&Carinho,
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MAIS PUBLICAÇÕES

Respostas de 25

  1. Que lindo poema e que sensível análise Jussara!!! todas as vezes que passo por aqui sinto falta de ler um pouco mais… poemas então, nem sei quando pude apreciar como deveria… mas ainda bem que temos você para nos presentear com as mais belas palavras em nossas visitas!!!
    Grande abraço!!!
    http://www.arquitrecos.com

  2. Oi, Ju,

    Belo poema e belas imagens (Deus usou muitas tintas nestas aves, que colorido maravilhoso!). Veja só que é ler com pressa, inicialmente eu havia entendido o "amargo passante" como alguém que passava, enquanto a poetisa observava os pássaros, rsrs. Ela, naturalmente, tinha de conhecer este alguém, para saber que ele era amargo, rsrs.
    Ah, aqui chamamos 'feijão verde' àquele que se debulha no momento da venda, ele não é comum aí na sua região? No norte de Minas é, pois tenho lembrança de minha avó debulhando feijão por lá, rsrs.

    Beijo e boa tarde, querida!

  3. Olá Jussara
    Lindo poema, misterioso, sensível, reflexivo… A análise e interpretação que fizeste, deram sentido a leitura do mesmo, tornando clara e harmônica sua compreensão.
    As imagens, muito bem selecionadas, são encantadoras, dão beleza e leveza ao post, além de mostrarem a maravilhosa obra de Deus Criador. Amei! 🙂

    Beijos…desejo-te uma abençoada quarta-feira!

  4. Jussara… menina…. como é bom gente que sabe escrever.
    Jamais teria essa sensibilidade de ler um simples poema e saber o que está escrito nas entrelinhas.
    Com certeza, depois desse post, sei que não sei ler poema…

    Obrigada, querida…
    E trabalhe, trabalhe… e depois volte!

    Beijos

  5. Parabéns pela bela interpretação deste lindo poema da Cecilia. É impressionante como um verso aparentemente tão simples pode ganhar tamanha magnitude quando pensamos sobre cada palavra contida nele.
    Leve, desejo e fuga;
    Leve, rápido (quase) invisível. Aqui para mim é o tempo que passa e a gente nem sente.
    Parabéns, aprendo muito por aqui.
    bj geande yvone

  6. Oi Ju

    Linda poesia , e você a interpretou de forma que todos pudessem capitar a mesma.
    As imagens dos pássaros tão lindas.
    Quero te dar uma notícia depois de minha irmã , pois ninguém ainda esta sabendo , mas meu retorno esta confirmado amiga .
    Dia 14 de maio estarei pisando em terras brasileiras novamente após mais de 8 anos , senod que já estou fora desde 1999 ( quando fui aos EUA ).
    Estou anciosa , feliz , mas anciosa frio na barriga confiando em Deus para que tudo corra bem .
    Beijinhos
    Deus abençõe

  7. Lindo poema! Cuidadosa e impressionante análise a sua… A leveza dos pássaros também impressiona minha vontade de ser leve e livre como eles. Quantas tintas poderia até usar, mas jamais conseguiria transpor tanta beleza e tamanha variedade de tons, tampouco a riqueza de seus cantos…

    Amei o post! Abraço!

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