Quando comecei a ler Fernando Pessoa, estava desarmada de preconceitos a respeito de seus heterônimos*, de sua criação de poetas independentes a retratarem o mundo em diferentes visões da mesma paisagem. Eu era uma adolescente apaixonada por poesia desde a mais tenra infância e o poeta português me fora indicado como referência a fim de me afastar de outros poetas “menos poéticos” com que me distraia até então. Ao ler Pessoa, então, sorvi sua poesia antes que essa poesia me convocasse à profundidade do mergulho que se exige de quem se aventura pelo “poço sem fundo” (assim se referiu o crítico Eduardo Lourenço ao processo da heteronímia) dessa poética.
A heteronímia foi se apresentando para mim com naturalidade e a leitura da bibliografia crítica a propósito da obra de Fernando Pessoa também surgiu naturalmente, como extensão do meu amor por sua poesia.
Há uma infinidade de textos a propósito da “diversidade” e da “unidade” que marcam a obra pessoana (Diversidade e unidade em Fernando Pessoa é, a propósito, título de uma obra de Jacinto do Prado Coelho, básica para quem deseja começar a pesquisar o poeta lisboeta) e não tenho pretensão alguma de tentar explicar aqui o processo que há décadas tem ocupado o pensamento dos críticos.
Teria o poeta que se autoproclamou “fingidor” criado os heterônimos como um romancista cria personagens, fingindo a despersonalização de si mesmo ao revelar-se em múltiplas personas? Ou seria real essa despersonalização, fruto da vivência de uma época em que – em decorrência do pensamento de Nietzsche e da revolução industrial, por exemplo – faliam as certezas e entravam em crise todos os valores absolutos que até então explicavam a existência humana?
Sobre essas questões a crítica debate há muito tempo, mas fatigada ou não pela heteronímia tem que reconhecer que não é possível ignorá-la quando se debruça sobre a poética de Fernando Pessoa a fim de saborear seus versos.
Foi o que experimentei, ainda adolescente, a partir de constatações muito simples que aqui compartilho na esperança de lançar alguma luz sobre aqueles que, quem sabe?, jovens como eu era, enveredam pelas trilhas poéticas desse grande escritor que, ao se revelar falho de certezas e, por isso, em busca das variadas facetas da verdade, revela-se profundamente humano e universal.
Deus, o Absoluto por excelência, cuja existência tem ocupado a reflexão metafísica desde sempre, não podia ser ignorado por Pessoa em sua busca da compreensão do mundo e de si mesmo. Assim sendo, figura nessa poética de forma fragmentada e multifacetada, representando de forma clara a desintegração do pensamento do próprio poeta.
Talvez tenha sido por essa trilha que minha compreensão da heteronímia se formou, atraída que fui pelas diferentes formas de o poeta falar sobre Deus. Criada numa igreja cristã reformada, cresci ouvindo sobre o amor de Deus, o que me levou a professar, também na adolescência, minha fé Nele e em Seu Filho, Jesus Cristo, enviado ao mundo como resgatador da humanidade separada de Deus pelo pecado**.
Segundo a famosa biografia dos heterônimos, que o próprio Fernando Pessoa enviou a Adolfo Casais Monteiro, Alberto Caeiro é o poeta da Natureza, do real e do objetivo, que só acredita naquilo que seus olhos veem, naquilo que ouve, cheira, saboreia e toca. É o poeta das sensações e despreza a necessidade de explicações e a utilidade do pensamento (“o único sentido oculto das coisas/ É elas não terem sentido oculto nenhum”), aderindo espontaneamente às coisas tal como são, reconciliado com um universo primordial e pagão. Assim sendo, Deus, como o conhecemos, é para Caeiro uma impossibilidade:
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A concepção de Deus presente nesses versos aproxima-se do panteísmo, doutrina filosófica segundo a qual só o mundo é real e Deus é a soma de todas as coisas e nelas se manifesta. Mais que um pagão, portanto, Alberto Caeiro pode ser considerado a essência mesma do paganismo.
O “Poema VIII” de O guardador de rebanhos, obra de Caeiro, com sua blasfêmia quase infantil, que assusta os cristãos, explica-se como fruto desse pensamento. Ao falar do menino Jesus “fugido do céu”, o poeta está, na realidade, falando de sua “cotidiana vida de poeta”:
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Em consonância com a biografia de Caeiro, sua linguagem é simples, familiar e objetiva, seus versos são livres e irregulares, normalmente longos, repetitivos e despreocupados com relação à sonoridade.
Ricardo Reis, por outro lado, é discípulo de Alberto Cairo. Pagão, portanto, e admirador do equilíbrio e da ordem do espírito clássico greco-latino, procura alcançar a paz e o equilíbrio através da aceitação da ordem natural das coisas, do domínio das paixões e da vivência dos prazeres da vida e do momento presente, embora sem excessos.
Inspirado pelos clássicos, de quem herda essa visão epicurista e estoica da existência, usa uma linguagem culta e precisa, recheada de alusões aos deuses da mitologia.
Reis acredita, diferentemente de Caeiro, que além da verdade imediata das coisas está o imponderável: “Acima da verdade estão os deuses”. Para ele, entretanto, o Deus único da tradição judaico-cristã é inaceitável:
O modernista do grupo de heterônimos (e aqui me atenho aos três mais importantes e acabados que, junto do poeta ortônimo formam quatro poetas em um) é Álvaro de Campos: admirador de Wall Whitman, revela fascínio pelas máquinas e pelo progresso, mas tem uma visão pessimista do mundo e seus versos são marcados pela angústia, pela nostalgia da infância perdida, pela desilusão com o mundo, frustração, tédio e incapacidade de amar. Hiperbólico, é exclamativo e usa interjeições variadas, estrangeirismos, neologismos e onomatopeias exageradas. Normalmente seus versos são longos, verdadeiros “versos-parágrafos”, como já disseram, mas se permite versos curtos também, alternando, ainda, poemas muito extensos com poemas curtos. Em sua obra, o heterônimo manifesta ora um desesperado desejo de crer em Deus, ora uma crença Nele, mas sempre em meio à angústia:
Para si mesmo, Fernando Pessoa parece ter escolhido as características mais tradicionais e menos comprometedoras. O poeta ortônimo (em meio à obra de Pessoa, aquele que assina seus versos como ele mesmo, ou seja, como Fernando Pessoa) é um poeta que escreve sonetos, mas usa com familiaridade os versos redondilhos, habituais no cancioneiro português, usa métrica e rima, é nacionalista e reflete sobre a própria poesia, entendendo-a como produto intelectual.
Uma vez que não nasce diretamente da emoção, mas da recordação dela, o poema é uma construção mental e, portanto, confunde-se com o fingimento (“O poeta é um fingidor/ finge tão completamente…”). Intelectualizando, portanto, sensações e sentimentos, o ortônimo ainda aproveita cuidadosamente características do simbolismo e do impressionismo e abre caminho para o modernismo.
Em sua poética não há dúvidas sobre ser Deus o criador dos céus e da terra e sobre a soberania de Jesus Cristo:
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É impossível ignorar visões tão diferentes oriundas da pena de um único poeta (o que realmente existiu) que se desdobra em outros (que é difícil crer que não existiram); que é todos, já que os criou e seus pensamentos nasceram de seu criador, mas que ao mesmo tempo não é nenhum deles, pois se é capaz de todas as visões que seus heterônimos manifestam, quem é, realmente, o poeta oculto por trás das máscaras?
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Beijo&Carinho,
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*Heterônimo: outro nome, diferente do nome do poeta que o criou. Não confundir com pseudônimo, que é um nome falso, que oculta a verdadeira identidade do criador. No caso do heterônimo, a obra por ele assinada tem características próprias, diferentes da obra que o autor assina com o seu próprio nome (ortônimo, o nome correto).
** Uma vez separado de Deus pelo pecado, o homem vem tentando através dos séculos religar-se a Ele (vem daí, do verbo latino religare, a palavra religião). Os textos sagrados, entretanto, explicam que é o próprio Deus quem providencia o resgate da humanidade quando envia seu Filho único e sem pecado para representar o homem e receber sobre si a punição que a santidade e justiça de Deus exigem: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu único Filho para que todo aquele que Nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Evangelho de João, capítulo 3, verso 16).
Respostas de 3
Oi, ju,
Que ótimo post! Acho incrível que o Fernando Pessoa tenha tido tantos heterônimos e que cada um deles fosse mesmo como uma personalidade real, com biografia, estilo, “modo de ver a vida” , etc. Acho válido todo esforço para entender um pouco mais o poeta e o seus heterônimos. Quanto à relação do poeta (e seus heterônimos) – com Deus, – vou ser sincera – compreendo a postura deles. Eu tenho buscado Deus há muitos anos, chegando mesmo a ter me convertido ao protestantismo (presbiterianismo) depois de adulta e por vontade própria. E tenho conseguido manter a minha fé, a despeito de ter lido Nietzsche e outros pensadores ateus (os quais admiro, mas com reserva, quanto à fé).
Nesses últimos meses (uns 36 meses, talvez, desde que eclodiu a crise política no Brasil), tenho me irritado muito com a tentativa de muitos que se dizem cristãos, de vincular a fé cristã a um tipo de política mundana e rasa. Não compreendo “cristãos” que se julgam superiores, “cidadãos de bem” e merecedores de tratamento especial; e muitos menos os “cristãos” que não se compadecem do próximo, que eles gostariam de ver ‘exterminado’, caso esse próximo venha a cometer um delito contra alguém (aliás, sobre isso dizem coisas como: “bandido bom é bandido morto!”). São “cristãos” que reivindicam o armamento da população, amam a riqueza (e, de certo modo, desprezam os pobres, ainda que eles mesmos sejam pobres), enfim são muitas coisas que – em minha opinião – são profundamente anticristãs!
Como a gente sabe que essas pessoas são levadas a pensar do modo que pensam, resta-nos a constatação de que o cristianismo está sendo falsificado, para atender a interesses encobertos.
É possível que sempre tenha sido assim, e isso talvez explique a postura de muitos pensadores.
Bem, poderia me estender mais, mas me falta tempo para tanto, rsrs.
Um beijo!
P.S: A gente não consegue cair na página principal deste site (o último post), apenas clicando no seu nome (a partir do comentário feito por você em meu blog, por exemplo). Daí que eu acho que seria bom que você refizesse a conexão entre o seu nome e o link da página, para facilitar a chegada do visitante ao seu blog.
A poesia de Pessoa é complexa e ao mesmo tempo fascinante, mas não apenas por causa dos vários heterónimos.
É o meu poeta preferido.
Gostei do seu post, é uma boa análise de um tema que é inesgotável.
Jussara, um bom fim de semana.
Beijo.
Feliz aniversário, querida amiga Jussara.
Tenha um dia imensamente feliz.
Beijo.