PREFÁCIO AO LIVRO “ANTOLOGIA DA PALAVRA”, DE EDUARDO BORNELLI DE CASTRO

PREFÁCIO AO LIVRO “ANTOLOGIA DA PALAVRA”, DE EDUARDO BORNELLI DE CASTRO

 

Eu estava devendo a este espaço a publicação do prefácio que fiz ao livro Antologia da Palavra, de Eduardo Bornelli de Castro. Espero ter conseguido sugerir a beleza da construção e a poeticidade desses versos, de forma a despertar em você, leitor(a), a  vontade de também degustar esta obra:

 

 

CASTRO, Eduardo Bornelli de. Antologia da Palavra. Machado, MG: Rezende Office, 2019.

 

 

Assim que se separou da música (sim, porque na antiguidade os poemas eram cantados), a poesia imediatamente buscou criar expedientes próprios, ao nível textual mesmo, a fim de compensar a sonoridade perdida em decorrência da vida mercantilista que se iniciava.

O período humanista, interregno entre a Idade Média e a Era Moderna, é marcado justamente pelas primeiras tentativas formais de elaboração poética em busca da musicalidade e, nesse momento, surgem os versos redondilhos (de 5 e 7 sílabas métricas), que nos alcançam ainda hoje com o ritmo popular das trovas, quadras e cantigas de roda.

É no período literário seguinte, entretanto, o Classicismo (século XVI), que essa elaboração formal alcança o ápice com a criação do soneto que, anos mais tarde, já na virada para o século XX, seria trabalhado com esmero pelos poetas parnasianos; estes, encarando a perfeição estética de sua produção, passaram a se considerar príncipes entre os poetas que utilizavam formas menos sofisticadas.

Que se perdoe a vaidade desses poetas, pois a perfeição formal buscada – e alcançada – no soneto, é fruto de um árduo trabalho poético, um verdadeiro artesanato feito com palavras ou, como diz um dos “príncipes” (Bilac), “arte pura”.

A estrutura fixa do soneto, obtida através desse trabalho, nasce daquele antigo objetivo de captação musical, ainda que em um texto apenas escrito, sem arranjos ou acompanhamentos sonoros de nenhuma espécie. A elaboração dos versos em 10 sílabas métricas (decassílabos) pode ser trabalhosa, mas resulta no ritmo buscado desde os primórdios da arte poética e que se revela na boa leitura ou declamação.

Uma vez que têm todos a mesma métrica (terminam sempre na última sílaba tônica utilizada), os versos têm também o mesmo tamanho (o que se verifica em sua distribuição gráfica no papel) e vertem (a palavra verso vem dessa ideia de verter) todos eles, um a um, no mesmo tempo ritmicamente construído, seu conteúdo para o verso seguinte, até que toda a ideia trabalhada no soneto seja transmitida e concluída na estrofe final. Como o ritmo de um verso é idêntico ao do verso seguinte, a leitura do soneto é cadenciada, sonora, como uma música feita de palavras. O nome soneto, inclusive, do italiano sonetto, significa “pequena canção” ou, literalmente, “pequeno som”.

Sua estrutura perfeita – 14 versos distribuídos em 2 quartetos (estrofes de 4 versos) e 2 tercetos (estrofes de 3 versos), com versos decassílabos distribuídos em esquemas rímicos específicos e rimas bem construídas, ricas, raras e preciosas – justamente por ser tão sonora e bela, segue inalterada desde os tempos em que Camões, no século XVI, cantava as incongruências do amor ao afirmar que ele é “fogo que arde sem se ver”.

Mesmo quando o Modernismo, nas primeiras décadas do século XX, exaltou a criação de versos livres e brancos (sem métrica e sem rima), o soneto não foi de todo abandonado e os grandes poetas sempre admitiram que uma das características de um autêntico bardo é a sua capacidade de compor sonetos. A criação de outros poemas, segundo entendem esses escritores, sem o uso da métrica e da rima, só deveria ser permitida ao poeta que comprovasse a capacidade de criar sonetos, o que garantiria uma produção literária de qualidade.

Com o advento da internet e das mídias sociais, entretanto, esse sábio conselho se perdeu. De repente todos se tornaram escritores e editores de sua própria obra e a publicam sem pejo de seu vocabulário e pensamento reduzidos, bem como de seus erros de ortografia e concordância.

É nesse momento de pobreza estética e de conteúdo nas construções poéticas que, contrapondo-se a essa lastimável realidade, surge a poesia de Eduardo Bornelli de Castro.

 

 

 

 

Sem nada dever aos grandes sonetistas de nossa língua – digo isso não para enaltecê-lo, mas por constatar como verdade – tais como Camões e Bilac, já aqui citados, Gregório de Matos, Antero de Quental, Cruz e Souza, Vinícius de Moraes e Florbela Espanca, entre outros, Eduardo utiliza com mestria a estrutura do soneto, revelando verdadeiro pendor para o lavor poético e, simultaneamente, colocando em questão a temática bíblica, inovação que anuncia sua formação e vivência teológicas e promete suprir uma lacuna no meio eclesiástico que tanto se ocupa da música, mas que reserva apenas pequenas aparições, em ocasionais solenidades, para a poesia.

O leitor menos acostumado com a leitura de poesia pode inicialmente sentir certa dificuldade em penetrar o soneto cuja mensagem precisa se revelar em apenas 14 pequenos versos: o primeiro quarteto serve normalmente à introdução do assunto, as duas estrofes seguintes o desenvolvem e o terceto final contempla a conclusão e a decodificação de seu sentido. Como o texto se organiza com poucas palavras, escolhidas pelo seu significado, obviamente, mas também em função de sua participação no aparato sonoro do poema, o vocabulário algumas vezes se torna rebuscado (“Doutorávamos no empírico senso”, “brasão indefenso”, “Ledo erro”), o que pode provocar algum estranhamento, assim como a ordem sintática da frase quando aparece invertida (“Do Rio de vivas águas as ondas” em vez de “As ondas do Rio de águas vivas”, por exemplo). Mas que o uso da 2ª pessoa não intimide o leitor que também encontrará palavras comuns, usadas rotineiramente (“besteira”, “goteira”, “mixaria”) e até gírias (“forfé”, “papo”, “gama”) e situações pós-modernas (“posts”) como a troca de mensagens via internet: “Trocaste, ó alma, com teu ex, mensagem?/ Pulou na tela um “oi” mui colorido…”.

Ainda que o “tom” dos versos semelhe o de diálogos muito distantes de nós no tempo – alguns sonetos realmente reproduzem quadros bíblicos – o leitor atento perceberá que o conteúdo sempre aproximará o leitor dessa cena longínqua ou a trará para a circunvizinhança de quem lê, tornando patente e pessoal a mensagem apenas aparentemente recuada no espaço-tempo.

Para que o sentido do soneto não se perca, é bom ter em mente seu título – a referência bíblica (cujo texto aparece na página à esquerda do soneto) – fundamental para a apreensão do significado. Assim, antes de tentar descobrir quem teria sido por “três vezes fustigado com varas,/ De açoites… já cento e noventa e cinco,/ Tido por morto de tantas pedradas,/ Nu no frio, muita sede e faminto…”, convém atentar para o fato de que o soneto se constrói a partir da afirmação do apóstolo Paulo, em sua segunda carta aos Coríntios (4: 17), de que “a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós um eterno peso de glória”.  Dessa constatação advém a facilidade de entendimento do texto: Em que mundo tais castigos poderiam ser considerados leves e momentâneos? No universo daquele que os compara com a glória que há de ser revelada:

 

“É leve!” – pois guarda bem comparadas

Aflições com honras imensuradas

Peso: em que balança está medindo?

 

“É breve” – pois as horas trabalhadas

Garantem belas e eternas cearas.

Tempo: (é) curta a vida se esvaindo.

 

Percebe? A cosmovisão do apóstolo, advinda da iluminação do Espírito Santo, se coloca à disposição do leitor que a alcança a partir da luz que o texto bíblico incide sobre o poético. Tudo isso tendo como base um delicioso sermão de apenas 14 versos!

A reflexão promovida pelos versos se coloca, desse modo, a serviço da edificação do povo de Deus e, simultaneamente, evangeliza o leitor comum ou crítico, atraído apenas pela riqueza estética dos sonetos.

Observe os dois quartetos do soneto “2 Coríntios 4: 17”, acima citado:

 

Foi/ três/ ve/zes/ fus/ti/ga/do/ com/ va/ras,               (A)

De a/çoi/tes…/ já/ cen/to e/ no/ven/ta e/ cin/co,        (B)

Ti/do/ por/ mor/to/ de/ tan/tas/ pe/dra/das,              (A)

Nu/ no/ fri/o,/ mui/ta/ se/de e/ fa/min/to…                  (B)

 

‘Distraem’-no d’outras cargas mais pesadas                 (A)

(N’alma, gotejam ovelhas balindo),                                   (B)

Os perigos que seguem suas passadas.                            (A)

De tudo o(u)vi dizer (inda sorrindo!):                               (B)

 

Neste soneto o poeta utiliza rimas soantes (completa correspondência de sons) e toantes (conformidade da vogal tônica) para compor um esquema de rimas alternadas (ABAB) em que o primeiro verso rima com o terceiro, com o quinto e o sétimo versos, ao passo que o segundo rima com o quarto, com o sexto e o oitavo. Faz uso de rimas ricas (em que a concordância de sons se dá entre palavras de classes gramaticais diferentes) como entre “cinco” e “faminto” ou “pesadas” e “passadas” e metrifica todos os versos em dez sílabas poéticas. Note que escandi a primeira estrofe a fim de demonstrar o trabalho de versificação que é feito em todos os versos de todos os sonetos aqui reunidos.  

A separação silábica em poesia é diferente da tradicional, pois não se preocupa com a sílaba propriamente dita, mas com o som que ela produz. Assim, se na declamação uma silaba se funde à outra, considera-se que se trata de um som apenas. Essas sílabas poéticas são contadas até a última sílaba tônica do verso que, necessariamente, é o décimo e último fragmento de som considerado.

Ao longo deste livro você poderá verificar que o esquema rímico que constatamos neste soneto (ABAB) divide a cena com rimas interpoladas (ABBA) variando, assim, as posições em que os sons semelhantes podem ser verificados.

Desse modo, ao ser lido, cada soneto desprenderá seu “som”, ecoando melodioso aos ouvidos de quem aprecia poesia e de quem começará a apreciá-la ao entender que também ela pode ser usada para o louvor da glória de Deus.

Estamos diante de um poeta que é teólogo e de um teólogo que é poeta. Na antiguidade os gregos costumavam dizer que “Deus é poesia” e Eduardo, ao fazer uso dos incontáveis dons que lhe foram ofertados pelo Espírito, vem demonstrar que essa antiga afirmação não se distancia da verdade.

Além da perfeição formal, que surpreende numa época de palavras abreviadas e carentes de pontuação, os sonetos de Eduardo trazem ricas reflexões sobre a Palavra de Deus. Não sem razão batiza-se a obra de Antologia da Palavra, pois os sonetos (colocados em ordem cronológica em relação aos trechos bíblicos em que se baseiam) passeiam por passagens do Antigo e do Novo Testamento ou se formam a partir de questionamentos humanos frente à verdade revelada de Deus através da Palavra. Desse modo, prepare-se para encontrar sonetos que refletem sobre a egolatria e a pretensão humanas, a insuficiência da religiosidade para a salvação e, em contrapartida, a suficiência do sacrifício de Jesus, a segurança da salvação e da vida eterna, a soberania e a graça de Deus, a viva esperança da vida eterna, entre outros temas.

Em alguns sonetos, chama especial atenção a linguagem familiar com que certos quadros são abordados, aproximando leitor e história como no soneto “Êxodo 12: 3,5,6”, em que o cordeirinho pascal chega a receber um nome carinhoso, “Petelo”, ou no soneto “Hebreus 11: 7” em que um dos filhos de Noé se queixa do que ele e os irmãos estavam sofrendo durante a longa construção da arca: “Desculpa…”, diz Sem, “pode tomar teu café…”.

A desenvoltura com que o autor torna familiar e pessoal o texto abordado se nota também no soneto que se baseia no “Salmo 4: 8”. Neste o poeta conversa com a filha adormecida, falando-lhe de tudo o que fez para recebê-la e o quanto se dispõe a tudo solucionar por amor a ela, embora reconheça, no terceto final, que é “Deus que conta teus fios e os alisa/ Que tua vida guarda! Dorme, Luísa.” Assim também no soneto “Efésios 1: 9-10”, em que a figura do poeta se manifesta (“Sério! Inda escrevo sonetos, sim!”) para revelar que o protagonismo não lhe pertence, mas que a glória é toda de Deus e nela ele orbita “ofuscado e alegre… fim!”.

Quer Eduardo lembrar ao seu leitor que, tal qual Paulo, a ele entrega o que do Senhor recebeu (I Co 11: 23); que todas as coisas, inclusive os seus dons e, em especial estes versos, lhes foram proporcionados por Deus e a Ele são devolvidos para o seu louvor e honra (1 Cr 29: 14). Como o salmista ele pode dizer – e nós, como seus leitores, podemos afirmar também: “O meu coração transborda de boas palavras; meus versos eu dirijo ao Rei; a minha língua é como a pena de um habilidoso escritor” (Sl 45: 1).

 

 

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Beijo&Carinho,

 

 

 

 

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14 thoughts on “PREFÁCIO AO LIVRO “ANTOLOGIA DA PALAVRA”, DE EDUARDO BORNELLI DE CASTRO”

  • Oi Jussara acho interessante essas elaborações poéticas, as vezes ao ler comentários bíblicos, tem as explicações sobre o livro de Jó, e fico tentando imaginar como seria, pois na tradução fica diferente.
    Sempre penso como é trabalhoso, mas para quem tem o dom, deve fluir naturalmente.
    O versículo citado de Paulo eu gosto muito, nossa leve e momentânea tribulação, como vamos viver a eternidade, tudo se torna leve e momentâneo.
    Amei a indicação.
    Muitos beijos,Vi

    • Obrigada, Vi, pela visita e comentário. Precisamos da poesia para tornar leve o nosso momento, não é mesmo? Embora toda a poesia seja nada diante da eternidade com Jesus. Abraço!

  • É muito bom poder resgatar um pouco da beleza perdida dos sonetos, tenho tentado voltar um pouco a procurar coisas antigas que nunca vão passar por guardarem em si uma beleza eterna. Estou lendo também um livro que fala um pouco sobre esse resgate, chama-se BELEZA, de Roger Scruton.
    Amei sua postagem.
    Grande abraço,
    Drica.

    • O autor vale a leitura, Nina. Infelizmente, ainda não está disponível em todas as livrarias, mas pode ser adquirido no link que disponibilizei na postagem. Obrigada pela sua visita e comentário. Abraço!

  • Que prazer enorme ler você aqui novamente. Eu acredito de pés juntos que para quem gosta de literatura, é extremamente importante conhecer as diferenças entre poesia o poema e o soneto. No Brasil, eu acredito que o nosso maior sonetista foi Vinícius de Moraes, responsável por obras-primas como o Soneto do Amor Total, um dos poemas mais conhecidos da literatura brasileira. Parabéns pelo belo e elucidativo prefácio. Vou procurar o autor.
    Um abraço se cuide e fique bem bj

    • Também fiquei muito feliz em encontrar postagem sua! O livro não está disponível em todas as livrarias, mas pode ser adquirido no link que disponibilizei na postagem. Obrigada pela sua visita e comentário. Abraço!

  • Olá, Jussara.
    Seus comentários sobre literatura são – como sempre – um delicioso exercício de saborear os detalhes de uma atividade que necessita de um olhar (paladar) apurado pelo dom da sensibilidade.
    Lembram-me estes programas de culinária que estão passando na TV, onde os cozinheiros mostram detalhes sobre os ingredientes e processos de feitura de um prato que eu não imaginaria existir, caso não fosse conduzido com maestria pelos caminhos que exploram o refinamento e beleza da atividade.

    “Gourmet é o nome que se dá um estilo de culinária mais elaborada, requintada e que atende as exigências do consumidor com gosto mais apurado em relação à qualidade e apresentação do prato ou da bebida.” (Fonte: https://www.significados.com.br/gourmet/).
    Cada vez mais, em minha opinião, sua visão e vivência literária é “gourmet”, no melhor sentido da expressão! Uma delícia de ler!

    Obs: Incluo no elogio, a beleza das imagens – fotos, telas e objetos – que você destaca!

    • Muito brigada, Sylvio, pelo comentário tão elogioso! Adorei a aplicação do termo “gourmet” ao meu ofício de crítica literária. Grande abraço!

    • Eu fico feliz de poder compartilhar alguma coisa. Obrigada pela sua leitura atenta e pelo seu carinho. Grande abraço, João Antônio!

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