Se para os poetas (homens) nunca foi muito fácil serem reconhecidos por sua arte, a situação da mulher poeta sempre foi muito mais complicada, pois ela precisou, primeiramente, aprender a dominar a palavra em um mundo que reservava aos homens o acesso aos livros e à educação.
Sim, foi um trabalho de séculos até que a mulher ousasse expressar por escrito sua condição e, ainda assim, seus versos foram, nesses primeiros tempos, ridicularizados pelos homens que os consideravam superficiais, filosófica e poeticamente pobres, úteis apenas para entretenimento nos saraus lítero-musicais dos anos que iniciaram o século XX.
Um século depois, entretanto, poetas de todos os gêneros descobriram na internet um espaço para se reunirem e recriarem, virtualmente, esses saraus perdidos no tempo. Blogs e sites de relacionamento como o Facebook e o Instagram tornaram-se refúgio para os poetas que passaram a ter uma visibilidade nunca antes imaginada.
Ao lado de uma profusão de selfies, fotos de viagem, pratos de comida e looks do dia, passaram a figurar pequenos poemas, manuscritos ou grafados com fontes inusitadas, ilustrados por traços minimalistas ou com colagens.
Esses micropoemas costumam tratar de relacionamentos e autoaceitação e embora em sua maioria pairem todos em torno do que Fernando Pessoa chama de “o primeiro grau da poesia lírica” (aquele em que o poeta, concentrado em seu sentimento, escreve sobre esse sentimento), esquecidos de uma segunda (e essencial) leitura que verifique sonoridade e ritmo (importantes características da poesia de qualquer tempo), viralizam com facilidade, tornando conhecidos – e famosos – os seus criadores.
Nesse veio poético proporcionado pelos espaços virtuais, Rupi Kaur talvez seja o nome mais conhecido.
Rupi Kaur – Foto de Nabil Shash
A jovem indiana de 25 anos, radicada no Canadá desde a infância, é desenhista e poeta. Seus poemas giram em torno do amor, sexo, perda, abuso, trauma, cura e feminilidade.
Outros jeitos de usar a boca é o nome com que foram publicados no Brasil os poemas que, nos Estados Unidos, viraram um fenômeno sob o título “Milk and honey”, com mais de 1 milhão de exemplares vendidos. A grande verdade é que Rupi já era famosa na internet e isso impulsionou a publicação do livro (e de um segundo, “O que o sol faz com as flores”, que em breve comentarei aqui).
KAUR, Rupi. Outros jeitos de usar a boca. Trad. de Ana Guadalupe. São Paulo: Planeta: 2017, 207 p.
Outros jeitos de usar a boca se divide em quatro partes – a dor, o amor, a ruptura, a cura – e cada uma delas lida com mágoas diferentes. Em todas chama a atenção a intensidade da autora que, apesar de tratar de temas pesados como violência e opressão da mulher, faz isso de forma delicada, demonstrando a força da mulher que consegue ser feminina apesar da crueza de sua realidade.
São poemas curtos, ilustrados pela autora, e sua leitura se faz de forma fácil e rápida, embora se prestem, pela profundidade daquilo que abordam, a estudos mais demorados.
Em um momento em que tanto se fala sobre “empoderamento feminino”, recomendo a leitura desses versos que surgem como forma de resistência e se oferecem, do mesmo modo, à resistência de outros leitores (em especial, de mulheres) que vivenciam os problemas poetizados.
É praticamente impossível, se você é mulher, concluir a leitura sem se identificar com um (ou vários) poema:
você pode não ter sido meu primeiro amor
mas foi o amor que tornou
todos os outros amores
irrelevantes
(p. 63)
quando você estiver machucada
e ele estiver bem longe
não se pergunte
se você foi
o bastante
o problema é que
você foi mais que o bastante
e ele não consegui carregar
(p. 103)
eu tive que ir embora
eu estava cansada
de deixar que você
me fizesse sentir
qualquer coisa
menos que inteira
(p. 107)
Amanda Lovelace é outra jovem escritora dessa nova geração. Sobre ela falei aqui, comentando o livro “A princesa salva a si mesma neste livro”.
Amanda Lovelace. Foto: Olivia Paez
Em A bruxa não vai para a fogueira neste livro, seu segundo livro (todo ele grafado em tinta vermelha a fim de simbolizar a raiva-fogo da mulher-bruxa), a autora retoma a temática feminina e a expande ao apresentá-la como um retrato da história da mulher ao longo do tempo. Esse resgate da figura ancestral da mulher naturalmente poderosa se constrói pela recuperação das experiências de todas as mulheres que vieram antes da autora e pela antecipação das vitórias daquelas que virão depois, todas elas irmanadas pela vivência do feminino, pelas inúmeras tentativas de silenciamento e pela força de, ao invés, gritar e incendiar tudo à sua volta.
LOVELACE, Amanda. A bruxa não vai para a fogueira neste livro. Tradução de Izabel Aleixo. Rio de Janeiro: LeYa, 2018, 207 p.
Os poemas de Lovelace não são tão curtos como os de Rupi Kaur, mas os versos são bastante ligeiros, de leitura fluida, alguns se convertendo em verdadeira prosa poética ou invés de poesia.
Como comentei aqui, a propósito do primeiro livro da autora, seus poemas não são fabulosos, “daqueles nos quais se percebe emprego de grande trabalho de elaboração poética e que, por serem belos e profundos, abalam as estruturas do nosso ser; soam sinceros e comoventes, entretanto, ao repartirem momentos dramáticos de dor, aprendizado e crescimento”.
Divido em quatro partes – o julgamento, a queima, a tempestade de fogo, as cinzas – este segundo livro da autora norte-americana utiliza a imagem da bruxa a fim de apontar a força que reside na mulher que se aceita como é:
ele
disse a ela
para não
brincar
com o seu
pobre
coração-
zinho
então ela
o poupou
indo
e m b o r a
&
foi
quando ele
roubou
todos os
sorrisos dela
& jogou-os
nas
águas
escuras&geladas
de dezembro.
– às mulheres que perderam a batalha, que descansem em paz.
(p. 87)
estou
bem certa de que
você tem
feitiços
correndo
por
suas
veias.
– as mulheres têm uma espécie de magia II.
(p. 145)
Um dos grandes nomes da poesia que surgiu nas redes sociais, a jovem escritora Amanda Lovelace, de apenas 20 anos, incentiva a autoaceitação e prepara as mulheres para a vivência de um tempo – a partir de agora – em que as bruxas não mais morrerão na fogueira, ainda que a sociedade continue tentando oprimi-las.
Na linha das obras citadas acima aparece Tudo nela brilha e queima, da cuiabana Ryane Leão, professora de 28 anos, que vive em São Paulo e que há mais de dez anos vinha publicando em blogs autorais, mas que se tornou conhecida depois de começar a publicar no Instagram. Ela ainda divulga seus versos pelas ruas da cidade em varais de poesia, também chamados de lambe-lambes.
Ryane Leão. Foto: Marcos Alves – Agência O Globo
LEÃO, Ryane. Tudo nela brilha e queima. São Paulo: Planeta, 2017, 190 p.
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A temática de Ryane também é feminina e a intensidade que marca as duas poetisas anteriores também a acompanha:
do que eu sei agora
me vi uns anos atrás
e quis dizer pra mim
se ame
antes de tudo começar
depois que tudo terminar
e durante esses espaços todos
se ame.
(p. 64)
o tanto que eu usei se eu pudesse
quando na verdade eu podia
infelizmente demora demais
para reconhecermos nosso tamanho
(p.170)
Talvez pela forma de divulgação – acompanhados de ilustrações – talvez por serem mais prosa fragmentada em versos do que propriamente poesia (enquanto construção artística), o fato é que os poemas divulgados pelas redes sociais têm conquistado leitores. Prova disso é o fato de as duas primeiras escritoras aqui citadas terem publicado pela segunda vez enquanto o livro da brasileira Ryane já está na segunda edição – coisa raríssima no mercado editorial brasileiro que costuma descartar sem muita piedade os livros de poemas que lhe são submetidos.
Eu amo poesia e vejo com alegria esse despertamento, embora continue exigente em termos poéticos e guarde alguma reserva a respeito desse boom. A emoção – e volto ao pensamento de Pessoa que citei no início – é apenas o primeiro grau da poesia. O aparato imagético, sonoro e rítmico que caracteriza a poesia deve vir após a emoção e é esse trabalho de construção, que caracteriza o ofício do poeta, que faz a verdadeira – e grande – poesia.
Todo poema, entretanto – inclusive esses contemporâneos – é porta de entrada para outros poemas e se por ela entrarem novos leitores… viva a poesia!
Dos livros aqui citados gostei bastante de Outros jeitos de usar a boca e de Tudo nela brilha e queima. Embora tenha lido pela internet que Amanda Lovelace amadureceu muito da obra anterior para esta, não consegui gostar dos poemas de A bruxa não vai para a fogueira neste livro, obra que entendi mais como um manifesto feminista fragmentado do que propriamente um livro de poesias.
Entretanto, independentemente de minha opinião pessoal, creio que as três obras merecem ser conhecidas e apreciadas. Como sugeri no post que fiz sobre a obra anterior de Amanda Lovelace, os três livros são ótimos para presentear e indicar para adolescentes (especialmente jovens mulheres). A leitura é fácil e pode ser recomendada no ensino médio: não para cobrar apresentações que valham nota, pelo amor de Deus, mas simplesmente para ensinar que a leitura pode, por simples que seja, propiciar, a um só tempo, emoção, prazer e aprendizado.
Beijo&Carinho,
.
Respostas de 6
Oi jussara que maravilha. Vou tentar comprar os três. Bj
Que legal, Yvone! Estou certa de que irá gostar!
Grato pelas indicações destes livros tão interessantes!
Não são maravilhosos, mas representam bem o que se lê hoje no Brasil em termos de poesia…
Oi Jussara.
Eu tinha escrito um comentário nessa postagem.
Mas minha internet caiu. Não sei se foi ou não.
Enfim…
Eu amei sua resenha desses livros.
Eu acompanho a Ryane pelo instagram, e os poemas dela são bem penetrantes, intensos.
Também já vi ela em entrevistas na TV e tal.
“Outros jeitos de usar a boca” eu já assisti uma resenha de uma youtuber.
O outro livro que eu não conhecia ainda.
Obrigada por compartilhar seu olhar de cada uma dessas escritoras.
Abraço
Que bom que gostou, Ana Vi!