Assim como os objetivos do escritor, ao escrever, determinam as funções da linguagem, as intenções com que o leitor se aproxima do texto norteiam, também, o tipo de abordagem que ele deve escolher para a leitura: mais ou menos atenta, mais rápida ou mais demorada, com maior ou menor interação.
“De modo geral”, explicam Koch e Elias (2011, p. 19), “há textos que lemos porque queremos nos manter informados (jornais, revistas); há outros textos que lemos para realizar trabalhos acadêmicos (dissertações, teses, livros, periódicos científicos); há, ainda, outros textos cuja leitura é realizada por prazer, puro deleite (poemas, contos, romances); e, nessa lista, não podemos nos esquecer dos textos que lemos para consulta (dicionários, catálogos), dos que somos “obrigados” a ler de vez em quando (manuais, bulas), dos que nos caem em mãos (panfletos) ou nos são apresentados aos olhos (outdoors, cartazes, faixas)”.
Um mesmo texto pode, entretanto, ser lido por “obrigação”, na adolescência, e, mais tarde, na maturidade, ser lido por puro prazer.
O leitor competente participa da construção do sentido do texto. O texto não existe como tal sem a existência do leitor que o valida e, enquanto construtor de sentido, o leitor utiliza-se de estratégias de leitura que o levam a processar, criticar, contradizer ou avaliar a informação que tem diante de si, de modo a rechaçá-la ou desfrutá-la, conferindo sentido ao que lê (SOLÉ apud Kock e ELIAS, 2011, p. 13).
Ao se deparar com o texto, o leitor competente estabelece relações com os conhecimentos que já possui, faz inferências (deduz algo a respeito a partir de sua experiência e conhecimento), formula questões a propósito do que leu, processa, contrasta e avalia as informações que encontra, produzindo sentido para o texto lido.
Exemplo:
Branca de Neve
Pedia diariamente ao príncipe que lhe dissesse coisas bonitas e que a fizesse feliz. Ele achava perda de tempo dizer qualquer coisa quando podia tê-la em seus braços. Achava, por sua vez, que ela dizia tanto que o amava, mas ficava sempre muito fria quando ele a tocava. Um dia ela encontrou um anão que não tinha os belos olhos do príncipe, mas sabia dizer versos, apreciar cada curva do seu corpo e repetir, vezes sem conta, que ela era linda e que ele a queria. Não teve dúvidas: fugiu com ele.
(Jussara Neves Rezende)
Antes mesmo de iniciar a leitura, o título do miniconto faz com que o leitor antecipe o que vai ler. Num primeiro momento é possível que ele pense se tratar do conto clássico, mas essa ideia logo será abandonada, pois enquanto no conto original o único beijo que acontece é aquele com que o príncipe resgata Branca de Neve da morte, levando-a, em seguida, para o seu “castelo nas nuvens”, no texto em questão há uma sugestão de proximidade física: o príncipe queria “tê-la em seus braços” e achava que ela ficava sempre muito fria “quando ele a tocava”. O termo “sempre” indica a constância desse relacionamento físico, praticamente inexistente no conto original.
Nessa altura, ao contrastar os dois contos, o leitor infere que o conto atual é voltado para um público adulto, pois sua experiência o ensinou que certos temas não são próprios para crianças.
O novo conto, entretanto, mantém pontos em comum com o original e o leitor, comparando-os, identifica, além do título, a presença do príncipe e de um anão, que o remete aos sete anões da história original.
Naquele conto, a Branca de Neve fugia do castelo de seu pai para escapar de sua madrasta, que a queria morta, e essa fuga acaba colocando-a nos braços do príncipe. Neste conto, a personagem foge do príncipe, o que distancia este texto do original e faz o leitor considerar o novo contexto em que este miniconto foi produzido: enquanto Branca de Neve, conto da tradição oral alemã, foi compilado e publicado pelos irmãos Grimm entre os anos 1812 e 1822, há duzentos anos, portanto, o texto apresentado é um miniconto, característica dos textos na modernidade, que tendem a ser breves; além disso, foi publicado pela autora num website.
Ao processar essas reflexões sobre o contexto em que foram gestados os textos, ciente de estar diante de um claro exemplo de intertextualidade, o leitor avalia a fuga da personagem dentro do quadro atual em que a mulher conquistou espaço na sociedade, analisando-o de acordo com essa nova perspectiva, segundo a qual a mulher pode decidir os próprios rumos.
Apesar da brevidade do miniconto em questão, a reflexão sobre as estratégias de leitura possíveis diante do texto ainda poderiam continuar, mas o que vai dito acima já é o bastante para exemplificar a abordagem que se espera de um bom leitor.
Note que toda essa reflexão não precisa ser escrita pelo leitor, a não ser que ele esteja fazendo uma prova que solicite uma análise, mas o que acima vai dito é o que deve passar pela cabeça do leitor no momento em que confronta o texto. Interpretar é isso. Eu usei um exemplo literário (é a minha área, afinal), mas esse processo mental deve permear a abordagem de todos os textos que você confrontar.
Beijo&Carinho,
.
Referência:
KOCH, Ingedore Villaça, ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender: os sentidos do texto. 3ª ed. São Paulo: Contexto, 2011.
REZENDE, J. N. Branca de Neve. Disponível em: < https://rezendeoffice.adm.br/jussaraneves/2011/11/um-conto_22.html>.
Uma resposta