SIQUEIRIIINHA!… QUAREEESMA!…

“Siqueiriiinha!… Quareeesma!”

Apenas escurecia, mas o grito da Lupércia, mãe do menino, conseguia, ao menos durante aqueles quarenta dias, trazê-lo mais cedo para casa

Eu devia ter uns doze anos e em minha vida de menina protestante nunca a Quaresma representara coisa alguma. Era curioso, portanto, observar como uma simples palavra podia carregar uma série de ameaças de almas penadas, assombrações e coisas de outro mundo a ponto de levar mais cedo para casa um moleque levado que, de outra feita, seria difícil arrebanhar.

Os fundos de nossas casas confinavam e dividiam, junto de outras casas, o mesmo imenso quintal, praticamente uma chácara, onde havia várias mangueiras e jabuticabeiras e onde nossa meninice – do meu irmão e minha, assim como a do Siqueirinha e de seus irmãos menores (pois sua família era grande e ele já tinha irmãs mocinhas) – podia se esparramar.

Não havia calçamento de nenhum tipo na rua que, hoje, é uma das principais avenidas da cidade. Na rua de cima, sim, calçamento de pedras, longo caminho a percorrer até a escola…

Não no momento do grito. É noite. Meu pai chegado do trabalho, mãe a colocar o jantar na mesa. A casa é pequena, mas não necessitamos de muito mais do que temos. Uma TV pequena, ainda em preto e branco, nessa altura, noticia qualquer coisa que não lembro… muito antes dessa época meus interesses já orbitavam em torno dos livros.

Meu irmão chega antes ou depois do grito da Lupércia? Não consigo lembrar. Antes, acredito, pois meu pai era uma fera e vê-lo atravessando o quintal, na volta para casa, devia ser suficiente para trazê-lo de alguma arte que estivesse fazendo, como espiar, junto do Siqueirinha, o casarão para além do muro, onde – sou testemunha – uma gente muito esquisita morava, ou fazer ligação direta em um dos caminhões que ficavam estacionados num canto desse enorme terreno, ou atiçar o Toddy, o cachorrinho neurótico do filho do patrão do meu pai, ou, ou…

Se a visão de meu pai chegando não fosse suficiente para que meu irmão viesse para casa, meu pai possivelmente iria buscá-lo pelas orelhas, então sou levada a crer que ele já está conosco quando o grito chamando o Siqueirinha nos lembra da existência da Quaresma. Mas é possível que estivessem ambos, Siqueirinha e ele, às voltas com um tatu que descobriram no mato, sob uma das mangueiras, bem junto do muro que separava nosso quintal da casa onde vivia a tal gente esquisita entre a qual havia um menino triste que não era nosso amigo… Caso fosse assim, é bem possível que meu irmão chegasse em casa com o ar frustrado de quem viu cancelada uma travessura, pois pelo menos durante quarenta dias o Siqueirinha levava muito a sério o retorno para casa ao escurecer.

Décadas depois e ainda ouço, como se fosse agora, o grito a varar a noite…

Em volta da mesa, aconchegados e sem medo algum de almas penadas, sorríamos.

 

Beijo&Carinho,

 

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Respostas de 48

  1. Olá, Ju, bom dia,

    Gostei do texto, que revela tanto do nosso universo de criança, e até da nossa realidade de brasileiros. Acho curioso o respeito que o povo simples tem pelos eventos religiosos. Digo isso porque o aparecimento da Internet revelou-me que uma parte grande desse povo não sabe muita coisa sobre a fé que professa, rsrs.

    Beijo

    1. Concordo muito com você, Marly. Antes do advento da internet eu tinha outra imagem das pessoas com relação à sua religiosidade. Percebi tanta incoerência depois disso!
      Abraço!

  2. Oi Jussara, é a Vi, existia muitas tradições que faziam o povo ter mais reverencia,ter algum respeito pelo sagrado, hoje quaresma é tempo de dançar funk.
    Boa semana,beijos,Vi

    1. Verdade, Vi. A maioria só encara as datas religiosas como oportunidades de festas. É lamentável, como, aliás, quase todo o contexto em que estamos inseridos. Abraço!

    1. Obrigada, Nadine! Fico feliz de que tenha gostado. A verdade é que andamos todos em dívida nos dias que correm. O tempo é sempre insuficiente para tudo.Abraço!

  3. Que delicioso fragmento de vida!
    Muitas vezes vivemos arte e não nos damos conta, outras temos consciência que quão belas e fugazes são certas ocasiões.
    E vamos em frente… uma vez que parar é impossível, por mais que queiramos.
    Termino o comentário com um elogio à bela foto escolhida, com um toque de beleza, melancolia e intimidação que somente as ruas das antigas cidades são capazes.

    1. Obrigada, Sylvio! Concordo com você. A vida da gente é cheia de belos momentos que, vividos, se perdem para sempre. Graças a Deus pelo dom da escrita para resgatá-los! Abraço!

  4. Que beleza de texto. Bem sei dos temores da Quaresma, principalmente quando eram temores de criança que nada entendia, apenas obedecia. Para mim alguns de certa forma foram até válidos. Hoje adulta posso separar as crendices da "religiosidade" que para mim já não é tão ameaçadora. Gostei muito. Um abraço.

    1. Com tantos seriados e filmes (sem falar nos jogos de videogame) cheios de horror e violência, acho que hoje as crianças não se intimidam mais com os “perigos” da quaresma… rs. Obrigada pela visita, Liliane!

  5. Seria medo de almas penadas ou simplesmente um aviso da consciência para, pelo menos temporariamente, ser um bom rapazinho? De qualquer forma, o sorriso partilhado na casa vizinha deve ser lembrado como uma piada que os outros não entendem.
    Parabéns pelo netinho que está a caminho. Será uma avó babada, estou certa.

    1. Se medo ou aviso da consciência? Acho que as duas coisas, Ruthia. Quanto a ser uma avó babada, babona, completamente apaixonada… eu serei! Obrigada, querida amiga.

  6. Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh, que post delicioso !!!
    Que lembranças e que escrita !
    Sério, queria saber mais sobre esse quintal e sobre todos que nele viviam !!

    Ilovetu Ju !

    Bjus 1000 querida

    1. Claro que o quintal mudou com o tempo, mas outro dia passei por lá e o achei muito menor que em minhas lembranças. E muito mais estéril: as árvores foram todas cortadas 🙁 É pena, mas me alegra saber que despertei, com meu texto, sua curiosidade sobre esse espaço-tempo!. Iloveyoutoo, Lia, querida. Aliás, amei esse “Ilovetu Ju” 😉 Abração!

  7. Oi Jussara, já li seu texto, já respondi, mas hoje li de novo, como novidade, esse é o diferencial de escritores pra escritores, podemos ler varias vezes, mas sempre tem novidade, sempre tem emoção, tem emoção.
    Fiquei curiosa com o menino triste, qual seria a historia dele?
    Beijos,Vi

    1. Eu não entrei em detalhes, pois era muita tristeza e só isso já justificaria uma nova crônica. O bom é saber que o menino triste trabalhou, enriqueceu e é dono de lojas e prédios na cidade. Sem contar que tem uma família bonita, filhas já casadas, uma delas – olha como é curiosa a vida – é amiga de minha filha. Abraço!

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