BOLINHOS DE CARNE OU JOÃOZINHO E MARIA NA VERSÃO DE MINHA BISAVÓ

Era uma contadora de histórias a minha bisa. Ia dizer que ela gostava de contar os “causos” perdidos no tempo, recuperados por sua memória e ofertados por sua voz, mas não sei ao certo se ela realmente apreciava contá-los ou se apenas se dedicava a esses momentos como forma de carinho, pois me conhecia e ao meu – desde sempre – insaciável apetite por poesia, ficção e histórias verdadeiras vindas de épocas distantes, travestidas de fantasia.

Ela era analfabeta, mas possuidora de vasto repertório de contos de assombração, de princesas e fadas, todos com uma pitada muito sua no enredo, o que me levava a procurá-la ao fim da tarde, depois de cumpridos os deveres escolares, no quartinho onde ela vivia, em casa de meus avós, com o seu guarda-roupa de madeira escura e espelho bisotê manchado pelos anos.

Era hora de desenhos animados na tevê, mas Tom & Jerry e a Pantera Cor-de- Rosa não tinham como competir com suas lembranças de bonecas feitas de trapos e sabugos de milho, de porteiras e estradas poeirentas, de casamentos arranjados, chás e benzimentos.

Lembro-me de ouvi-la enquanto segurava suas mãos gordinhas, a pele fininha, cheia de manchas de idade. Eu achava lindas essas pintas, razão pela qual, ainda hoje, passados tantos anos, assusta-me que alguém possa desejar apagá-las com ácido, laser ou sei lá o quê, quando são elas uma espécie de poesia ou mapa ou tatuagem capaz de fazer sonhar.

Além das irrecuperáveis histórias de tradição oral e de suas memórias de menina nascida no tempo da escravidão, minha bisa contava também historietas infantis tradicionais, mas nem Cinderela nem Bela Adormecida tinham esses nomes conhecidos. Eram, sim, filhas de fazendeiros ricos, de cidades vizinhas à nossa, que se casavam com belos rapazes, também endinheirados, que, estudados, vinham resgatá-las da vida interiorana. Minha bisa, não sei como, era convidada para as festas de todos esses casamentos e de lá saía com um pratinho de doces para mim, mas tropeçava sempre na pinguela sobre o riacho que havia no caminho e os doces acabavam caindo na água e se perdendo.

 

D. Josefa Gonçalves, minha Vovó Bisa

8
8
A frustração que eu sentia por me ver privada dos doces me alcança ainda agora, bem parecida com a sensação de fazer parte de um conto de fadas que me toma toda vez que frito bolinhos de carne.

Na versão de João e Maria, contada por essa avó do passado, os irmãos encontram uma casa na floresta onde morava uma bruxa que… fritava bolinhos! Nada de chocolates e doces, mas um prato de bolinhos de carne no parapeito da janela, enquanto lá dentro a velha ocupava-se fritando mais, é que teria atraído os irmãos perdidos e esfomeados.

Não me lembro da voz de minha bisa, mas recordo-me perfeitamente de seu sorriso e do encantamento que experimentava ao ouvir seus “causos”.

No ar frio da manhã o cheiro dos bolinhos de carne que vão sendo fritos e descansam na travessa colocada na janela atiça o apetite da cachorrinha que me olha numa súplica. Os filhos chegam e a algaravia de suas vozes dispersa a sensação de ser eu a feiticeira da cabana na floresta. Estou de volta a mim mesma e ao novíssimo sonho de aconchegar no meu colo e nos meus contos os netos e bisnetos que um dia terei.

 

Beijo&Carinho,

8

MAIS PUBLICAÇÕES

Respostas de 17

  1. Boa noite, colega Jussara!
    Que postagem repleta de sentimentos, adorei! 🙂
    Ei, moça!
    Tem postagem novinha em "GAM Dolls (2)". Passe por lá e confira!
    Ficarei feliz com tua visitinha e comentário, sempre tão gentis.
    Tenha um ótimo fim de semana.
    Abração pra você! 🙂

  2. Que lindas lembranças!!!
    Lembro até hoje dos pastéis da minha bisá, que muitas vezes fazia até de mortadela quando não tinha recheios mais tradicionais,kkk. Já os "causos" era com o vô e o bisô, eram muitas histórias…era deliciosa essa época, assim como descreve a sua.
    Grande beijo

  3. Oi Jussara, é a Vi, que saudade eu senti, porque minha mãe também contava as historias que ela ouvia, pois perdi meus avós muito cedo.
    Imagino o sabor desses bolinhos, é um sabor encantado, o sabor do amor que essas pessoas nos deram ao contar essas historias.
    Amei conhecer um pouco da sua bisa.
    Beijos,Vi

  4. "Lembro-me de ouvi-la enquanto segurava suas mãos gordinhas, a pele fininha, cheia de manchas de idade. Eu achava lindas essas pintas, razão pela qual, ainda hoje, passados tantos anos, assusta-me que alguém possa desejar apagá-las com ácido, laser ou sei lá o quê, quando são elas uma espécie de poesia ou mapa ou tatuagem capaz de fazer sonhar."

    Oi Jussara,
    Li e reli esse parágrafo , achei que você foi extremamente feliz nas suas palavras acabando por compor dentro do seu texto um poema belíssimo. Imagino que enquanto você ouvia as histórias de sua bisa estivesse a contar cada manchinha ,seguindo o risco de suas veias mais expressivas em suas mãos, como se seguisse um mapa, e viajasse na sua imaginação. Esses textos carregados de lembranças de uma forma ou de outra me remetem as minhas próprias lembranças,
    e me emocionam muito. O que seria da vida não houvesse as memórias que se acumulam sobre outras e mais outras memórias alcançando gerações e mais gerações futuras! ADOREI. Aos poucos estou voltando com minhas visitas. Um abraço.

    1. Sim, herança de família, com certeza, Cris. Meu avô paterno era um grande contador de histórias também.
      Eu sou cristã, então eu abençoo em nome de Jesus 🙂
      Abraço!

  5. Ah, que maravilha, Jussara!
    (Pelo que conta, a Jussara foi a herdeira natural do legado de sua bisavó. E leva esse legado a preceito, isso é bem dedutível. Ainda bem.)

    Uma boa semana 🙂

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

plugins premium WordPress