UM GATO, DOIS GATOS… E A QUESTÃO DA INTERTEXTUALIDADE

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Quando um texto dialoga com outro texto estabelece-se uma relação intertextual a que chamamos intertextualidade. Esse diálogo consiste no fato de um texto se referir a outro ou de, direta ou indiretamente, intencionalmente, ou não, remeter a outro texto.
A palavra intertextualidade pode parecer grandiosa e sugerir uma complexidade que não existe necessariamente, pois mesmo quem nunca ouviu falar em intertexto com certeza já se deparou com algum em um ou outro momento.
Sabe aqueles versos bem conhecidos de Gonçalves Dias, “Minha terra tem palmeiras/ Onde canta o sabiá/ As aves que aqui gorjeiam/ Não gorjeiam como lá”? Quando no Modernismo Oswald de Andrade escreve “Minha terra tem palmares onde gorjeia o mar”, estabelece com os versos de Gonçalves Dias um diálogo, um intertexto. Ao mesmo tempo que faz referência aos versos do poeta romântico, o modernista Oswald imprime ao seu poema uma nova intenção: sua terra tem “palmares” e não palmeiras, o que demonstra sua perspectiva mais crítica da realidade brasileira; “palmares” é, claramente, uma referência ao quilombo e ao problema da escravidão no Brasil. Mais recentemente, quando o personagem Chico Bento, de Maurício de Souza, entusiasmado com as belezas de sua roça resolve declamar os versos de Gonçalves Dias, um passarinho faz titica em sua cabeça e, revoltado, o Chico exclama: “As aves que aqui gorjeiam deviam estar bem pra lá!”. Percebe como os textos conversam? Isso é um intertexto.
O intertexto pode acontecer também entre imagens, entre um poema e uma imagem, um poema e/ou conto/romance e um filme, uma música e uma imagem, um filme e uma música… as possibilidades são muitas.
Ainda pensando no Chico Bento, ocorre-me a flagrante intertextualidade entre a tela de Almeida Júnior, “Caipira Picando Fumo”, de 1893, e a criação de Maurício de Souza, de 2000, “Chico Tirando Palha de Milho”:
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Observe a intenção aberta do desenhista Maurício de Souza de referir-se à pintura de Almeida Júnior, pois o seu personagem está assentado num banquinho idêntico ao utilizado pelo “Caipira” da tela da Pinacoteca do Estado de São Paulo, com o mesmo cenário de fundo.
A intencionalidade marca também o exemplo acima citado, dos versos de Gonçalves Dias e Oswald de Andrade. Obviamente o poeta modernista parte do texto romântico para criar o seu a partir de uma perspectiva mais crítica.
Nem sempre, porém, em casos de intertextos, a intencionalidade está presente na raiz que os gerou. É o caso dos gatos de que tratarei a seguir.
O poeta Roberto Silva, que tive o prazer de conhecer por esses caminhos virtuais, compôs o poema abaixo:
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O GATO
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Pensativo sobre o muro
Há um gato.
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Tomos filosóficos?
Aquece-se ao sol?
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Não!
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 Posa para que o poeta
Possa tirar o seu retrato.
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Observe que o poeta atribui ao gato um estado de reflexão (“Pensativo”) que sabemos pertencer a ele, poeta, que se indaga sobre o que pode estar pensando – sobre o muro – o felino: “Tomos filosóficos?”, “Aquece-se ao sol?” O “Não” enfático – única palavra a constituir a terceira estrofe – parece surgir de um momento de repentina iluminação, pois os versos seguintes sugerem a tranquilidade de quem chegou à resposta de um inquietante problema: “Posa para que o poeta/Possa tirar o seu retrato”.
Note que ao fazer referência ao poeta, o poema se revela metalinguístico (um poema que fala sobre poema) e reforça, desse modo, a relação entre gato e poeta, pois este acaba por perceber que o que interessa na atitude pensativa do bichano é o fato de ele, poeta, poder transformá-la em poesia.
De que modo um poeta tira retratos? Com seus versos! O poema em si é, pois, o retrato para o qual, em sua pose filosófica, posava o gato.
Por puro acaso o Roberto encontrou na Web a fotografia abaixo:
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De Hugo Ruaz, fotógrafo lisboeta, “Gato no muro vigiando o Tejo” apresenta em primeiro plano o muro e o gato e, ao fundo, para onde olha o felino, o Tejo, a Ponte 25 de Abril e Lisboa (linda!). Mais ao fundo, atrás da Ponte, avista-se a Serra de Sintra (cidade mágica). Segundo o fotógrafo, que se encontrava num miradouro em Almada, na outra margem do rio, era fim de tarde e o céu estava embaçado, “indisposto”.
No título com que batizou a imagem transparece a visão humanizada do gato, o que se percebe também no poema do Roberto. Lá o gato opta por uma pose pensativa para que o poeta possa tirar ser retrato; aqui o gato “vigia” o Tejo e sua pose vigilante se transforma de fato em fotografia. Nas duas situações há um gato e um muro; em ambas, a atitude dos gatos sugere ao olhar artístico que os observa; uma realidade que é a que se vê, mas que é mais é que ela.
Embora um trabalho não tenha sido construído em razão do outro, dialogam lindamente entre si, num belo exemplo de intertextualidade.
Roberto Silva é paulistano, mas percorre há algum tempo as paragens mineiras. É formado em Violão pelo Conservatório Estadual de Música de Varginha e graduado em Letras pela UEMG-FEPESMIG, onde também se especializou em Língua Portuguesa. A especialização em Literatura Brasileira foi feita pela PUC-BH e uma terceira, em Docência em Educação a Distância, está sendo cursada pelo UNIS-MG, Varginha. Roberto revela viver um “caso quase secreto com a Poesia e a Música”, mas pelo que conheci de sua poesia está mais que na hora de o “caso ser revelado”, publicado, divulgado. Se ele permitir, publicarei aqui, em breve, alguns poemas seus que me encantaram.
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Cais das Colunas, Lisboa
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Também tive meu dia de olhar o Tejo…
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Beijo&Carinho,
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MAIS PUBLICAÇÕES

Respostas de 27

  1. Oi Jussara, é a Vi, oia eu na minha santa ignorância..
    Agora não tão ignorante, após uma aula dessas.
    Como sempre amo ler seus textos e amei aprender sobre intertexto.
    Bom fim de semana, beijos,Vi

  2. A NOSSA LÍNGUA PORTUGUESA É DIVINA, NÉ MESSSS, CONTERRÂNEA? KKK
    ADOREI SUA BELA EXPLICAÇÃO BEM DISSERTATIVA SOBRE O INTERTEXTO.
    TAMBÉM ADOREI O CHICO BENTO(É MEU PERSONAGEM FAVORITO DA TURMA DA MÔNICA. POR QUE SERÁ???), A CITAÇÃO DO GATO, ENFIM, SHOW DE BOLA!! DO PORTUGUÊS, JÁ SOU FREGUÊS!! (OU MELHOR, FREGUESA!! KKK)
    O SELINHO QUE EU TE DEI FICOU UM LUXO, UMA GRAÇA!!
    TUDO A VER COM TEU CANTINHO, UAI!!
    QUEM FEZ PROCÊ, JUSSARA?? QUERO UM TAMÉIN!!! KKK
    UM LINDO FINAL DE SEMAN PROCÊ, COLEGA!!
    E QUANTO AOS BROCHES, SÃO FACÍLIMOS DE FAZER. É SÓ PEGAR OS MATERIAR E BOTAR PRA QUEBRAR!!
    ABRAÇÃO PROCÊ E INTÉ MAIS VÊ!!!

  3. Oi, Ju,

    Vi os docinhos que vocês fizeram e tenho que dizer: ficaram perfeitos, parabéns! A idéia de registrar a "vida", diariamente, através de uma foto é muito interessante, eu até já pensei nisso (não para eu mesma fazer! rsrs), porque no início da Internet apareceu um homem que todos os dias fotografava tudo o que comia! rsrs. Não sei se ele continua com o projeto, rsrs.
    Quanto ao texto, resultou perfeito, como sempre: agradável de ler, português nos trinques e idéias instigantes!
    O Maurício de Souza com certeza se inspirou no quadro do Almeida Júnior, para fazer este desenho do Chico Bento. Mas ele não foi o único, pois o caipira tem sido retrado assim em muitos lugares, já vi "clones" desta imagem até em matéria de revistas, rsrs. Este caipira, aliás, me lembra o personagem Jeca Tatu, do Monteiro Lobato. Eu li o Urupês, do ML, mas não estou lembrada se foi nele que o Jeca Tatu apareceu pela primeira vez, rsrs.
    Quanto ao fotógrafo, ele tem realmente um olhar artístico, gostei muito das fotos.
    Ah, só uma curiosidade: Mobyto, nosso gato, adora ficar em cima do muro, parece que ele até cochila lá. Já tiramos várias fotos dele em cima do muro, rsrs.

    Beijoca, boa noite e ótima semana!

  4. Cada visita, uma aula! Como é bom chegar aqui e me perder no texto, passear pelas fotos e levar na lembrança a explicação detalhadinha sobre intertexto…Meu olhar será diferente, mais atento, daqui em diante!
    Bjnhos,Ana

  5. Texto e imagens … lindos demais!
    Ju, eu adoro a intertextualidade, pois pode enquicer e embelezar o que escrevemos. Tenho dois textos onde usei os versos de Quintana. Achei uma delícia!

    E faço minhas as palavras da Ana: cada post é uma aula! Maravilhoso vir aqui!

    Beijo no coração

  6. Olá! Boa tarde! Que post incrível…adoro a forma que vc narra…muito gostoso de ler!
    E de repente achei o gato na foto…esperando a foto parece!
    A última foto ficou maravilhosa!!!
    E o Chico Bento como a figura do quadro do caipira é muito legal! Perfeitos detalhes!
    Bjs e te desejo uma ótima semana com muitas ideias e paz!
    CamomilaRosa

  7. Ju!!! dei uma sumida porque estava estudando pra uma prova, mas agora voltei! Estava com saudades já e quando cheguei dei de cara com uma ótima aula! Intertextualidade….amei saber que tem como conciliar a blogosfera e o aprendizado…hehehe! =)
    Como estão as coisas por aí? espero que bem, flor!
    Bjinhos pra vc, fica com Deus e uma ótima semana!

  8. Oi Jussara,que fotos dignas vc postou aqui menina!!Todas lindas,a do gato maravilhosa.O Texto está um show.Simplesmente amei na infância,amo agora e vou ficar velha amando Maurício do Souza.É meu ídolo.Comecei desenhando a turma da mônica.Copiava dos gibis rsrsrs.Enfinnnsss,amei este seu trabalho,Parabéns.Boa terça…beijo..Lili.

  9. Vivendo e aprendendo…

    Achei interessante o Chico Bento…
    Tudo o que vc disse aí, não tinha nem ideia…. a gente lê e acaba não prestando tanta atenção, já que está no livro de poesias…. a gente, leiga, lê e pronto! Gosta ou não!

    Obrigada, querida, pela informação.

    Beijos
    Ótima semana pra vc!

  10. Quantos "pequenos detalhes" na nossa língua e na literatura, não?
    Gostei de te conhecer e saber sobre intertextualidade que tanto vemos acontecer… beijos,lindas fotos !chica

  11. Muito bom o post! 😀

    Eu sou uma apaixonada por fotografia!
    Amei sua foto e amei a interação entre "os gatos" (o da foto e o do poema)! heheheh
    É sempre interessante achar algo alheio que expresse um sentimento ou pensamento nosso, né?!

    Parabéns pela sensibilidade! x)

  12. Querida Jussara!
    Adorei a tua doce viagem, através desta "intertextualidade", onde as "criaturas" (ao invés dos "criadores") se comunicam, e na sua essência, acabam se fundindo no mesmo espaço tempo… Coisas que a filosofia ama intepretar, mas os corações absorvem a sua mensagem, sem muito pensar…
    Lindas as imagens das paisagens portuguesas e os seus gatos sentinelas! E o mistério da poesia se espalhando por tudo… Pura mágica nos olhos iluminados dos artistas do tempo…
    Aproveito pra te agradecer pelas tuas palavras tão carinhosas lá no meu cantinho…Saiba que elas sempre aquecem e alegram o meu dia… Muito obrigada,querida amiga!
    Beijos doces no teu coração de flor!
    Teresa

  13. Oi Jussara, adorei a sua foto do Tejo, muito linda!!! Acho maravilhoso quem tem o dom de ensinar, acho que por ser filha de uma ótima professora, então adorei a forma como você exemplificou o assunto. Engraçado como as coisas ficam marcadas na mente da gente: quando fui à Pinacoteca este ano e vi esta tela me lembrei na hora do desenho de Maurício de Souza e tem uma outra tela do mesmo artista ( acho que é Caipira sentado na janela) que eu adoro porque meu filhote quando tinha quatro anos fez uma versão em uma pequena tela infantil que eu amo e que nunca sai da minha parede. Adorei o post!!!
    Grande abraço!!!
    http://www.arquitrecos.com

  14. Olá Jussara, como vai você?

    E seu pai, como está? Me desculpe por não ter vindo visitá-la antes, mas é estranho como desde q voltei de férias eu sinto que estou 'correndo atrás do trem', sempre atrasada.
    Espero que tudo já esteja bem com ele.

    Ler seus textos é como voltar a ler os textos que eu lia qdo estudava Letras. Como leio + em inglês hoje em dia, vir aqui, e tranquilamente ler o q vc escreve me faz muito bem. É quase como um retorno às origens.

    Um grande abraço

  15. Olá Jussara, tudo bem?

    Que prazer fazer aniversário junto
    com voce. Adorei as suas palavras,
    e te desejo também muitas bençãos
    pela passagem do aniversário, que voce sempre possa dividir com a gente essas maravilhas de textos, como o
    de hoje. Fiquei maravilhada, aprendi muito, adorei todas as fotos.

    um beijo carinhoso

    Regina Célia

  16. Amigas queridas, repito-me, mas preciso dizer: vocês realmente me enriquecem. Fico feliz que tenham gostado do post, mas cada comentário acrescenta algo novo em minha vida e isso me faz muito feliz, obrigada!
    Bjo&Carinho da Jussara

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