Tive o privilégio de ler um livro inédito, escrito por uma adolescente que chamarei aqui de RARE, S. Ela tem hoje 15 anos, mas escreveu “Terra de M…” (oculto o título para preservar seu ineditismo) aos 9, confirmando seu diagnóstico de criança superdotada.
Apesar de uma necessária revisão da pontuação, do uso dos tempos verbais e de algum probleminha de concordância e de colocação pronominal – que são comuns até em teses de doutoramento (graças a Deus, porque se todos escrevessem corretamente eu não teria meu ganha pão) – “Terra de M…” surpreende e encanta pela criação de um universo de mistério e magia que pode conquistar jovens leitores atraídos por leitura de fantasia.
Apontando a tenra idade da autora está o fato de que L., a personagem principal, é uma menina que vive com os pais e, assim como RARE, S., é conhecida por ser muito inteligente e cheia de habilidades. Por outro lado, a figura do narrador é bastante complexa para sair da “pena” de uma autora tão jovem. Aparentando, na maior parte do tempo, ser onisciente (“L., secretamente, não parava de trabalhar em seu quarto…”), em alguns momentos o narrador confessa desconhecer certos detalhes: “Nem eu sabia o que ela estava fazendo, pois era muito complicado. Só L. entenderia.” Ou: “Não deu para ver o que tinha lá dentro, nem o lugar onde ele escondeu.”
Outra característica que aponta grande profundidade na obra é o uso que faz das cores que vão desde o jogo básico entre preto e branco até as elaboradas magenta, ciano, violeta, prateada… cada uma delas importante na construção e evolução da narrativa que se desenrola a partir dos efeitos provocados por essas cores na atmosfera mágica da “Terra de M…” Assim também com as várias pedras preciosas e/ou semipreciosas citadas na história, tais como diamantes, esmeraldas e cristais, que são partes integrantes e essenciais ao desenvolvimento do clima misterioso e mágico do universo apresentado.
Alguns nomes de grafia muito semelhante (não pretendo revelá-los aqui a fim de garantir sua originalidade caso RARE, S. chegue um dia a publicar a história), como L. e L. e K. e K., podem gerar alguma confusão numa primeira leitura rápida, mas uma releitura revela o trabalho de construção da autora que obtém, em meio à prosa, um belo e poético jogo de palavras.
Após o boom provocado por Harry Potter, a literatura de fantasia caiu no agrado do público juvenil e, nesse sentido, “Terra de M…” tem tudo para agradar, a partir do “Era uma vez…”, ao contar a história de dois reinos mágicos que entram em guerra. Ali os gatos são linces, coelhos, dragões; põem ovos e podem ter penas. As árvores também são mágicas e o leitor é levado a compartilhar a realidade do teletransporte e de compartimentos secretos abertos por alavancas misteriosas… isso sem mencionar a possibilidade de romance que se esboça para L. e que surpreende, na narrativa, pela complexidade com que surge e que parece ainda mais intrincada quando se pensa na idade da autora quando criou a história.
Pelo que acima vai dito fica claro que se trata de uma obra muito interessante que espero poder ver publicada um dia.
A linguagem é simples e a leitura flui. Eu aconselharia apenas que se repensasse a estrutura fragmentada que RARE, S. escolheu para “Terra de M…”, apresentando a história como se se tratasse de um seriado: “Não deixem de ler” a continuação, adverte a autora, quando essa sequência (e as demais) poderia(m) muito bem compor o primeiro capítulo que é bastante breve.
Há umas duas notas da autora que também poderiam fazer parte do corpo do texto e algumas frases precisam de conectivos que as unam, ampliando-as. As frases curtas são excelentes como são, especialmente para o público juvenil a que se destinam, mas em alguns momentos é preciso acrescentar um certo número de palavras que ampliem as informações dadas. T., por exemplo, aparece na metade do livro sem que seja oferecida nenhuma explicação sobre quem ele é, quando não precisaria muito para apresentá-lo, como neste exemplo: “T., amigo delas desde sempre…”.
“Aí eles se deram um beijo… por mais rápido que seja”, registra RARE, S. Este é um dos casos a que me refiro, logo no início deste texto, em que o tempo verbal precisa ser revisto. Observe que o verbo dar (“deram”) aparece no passado, ao passo que o verbo ser (“seja”) está no presente do subjuntivo. “… Por mais rápido que fosse”, deixaria a frase coesa, assim como “… por mais rápido que tenha sido” também poderia ser usado com coerência.
Assinalo essas questões por ser esse o meu papel aqui, mas não considero (e espero que você também não, leitor) como erros. Ocorre que RARE, S. escreveu e não retornou ao texto. A escrita é feita de várias e várias incursões que culminam com o texto que é definitivamente publicado. Cada uma dessas revisitações altera um detalhe aqui, outro ali… e é isso que constitui o trabalho do escritor. Espero que minhas observações iluminem o caminho para a jovem autora e que ela escolha por si mesma qual o tom pretende dar a cada palavra ou frase de modo a ressaltar sua escritura inegavelmente cheia de imaginação e criatividade.
Ao usar o plural (“deixem”, “já devem ter percebido”), a jovem escritora reflete a realidade das mídias sociais de se falar ao mesmo tempo para muitas pessoas. O livro, entretanto, embora fale a milhares de pessoas ao longo dos séculos, caracteriza-se por falar a um leitor por vez. Caso publique, RARE, S. deve se dirigir a esse leitor virtual e momentaneamente único, o que ela faz muito bem na página final, através do narrador que reconhece como objeto literário a história que conta: “… no livro que você lê”.
Nesse final, o narrador ainda confessa estar “escrevendo ficção”, mas, ainda assim, sentindo a história criada muito mais real do que conseguiria descrever. É ou não é mesmo um narrador bastante complexo se pensado como criação de uma autora tão jovem?
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Beijo&Carinho,
NOTA: Se você também tem um original que gostaria de ver comentado, solicite seu orçamento através do email atendimento@rezendeoffice.com.br ou pelo formulário disponível no link “Contato”, no Menu deste site. Obrigada pela leitura e comentário!
Respostas de 2
Oi Jussara os jovens com a facilidade de ter informação, inclusive nesse mundo de games, estão muito criativos, pena que nem todos gostem de escrever, espero que a jovem desenvolva o talento.
Muitos beijos,Vi
Oi, Vi, que bom receber sua visita! Eu também espero que a RARE, S. desenvolva seu talento. Infelizmente, creio que ela o sufoque para passar despercebida e se sentir “normal” como os colegas. Ela percebe seu Q.I. alto como um fardo, pois a torna esquisita diante dos demais…