AUSÊNCIA NA PRIMAVERA – RESENHA

AUSÊNCIA NA PRIMAVERA – RESENHA

 

Para minha mãe, que me presenteou com o livro

 

Poirot, famoso detetive criado por Agatha Christie, era extremamente orgulhoso de ser um exímio intérprete da natureza humana, o que lhe garantia a resolução de casos intrincados, mesmo sem sair de seu sofá, apenas por repassar mentalmente os dados colhidos por sua arguta observação e confrontá-los com os perfis humanos envolvidos no episódio em questão.

A elaboração desses caracteres que tanto interessavam ao detetive, entretanto, esteve desde sempre a cargo, como é obvio, da verdadeira grande intérprete da natureza humana, a própria Agatha Christie, famosa, por sua vez, pelos bilhões de exemplares de romances policiais vendidos em todo o mundo.

Eu li todos eles na adolescência e me lembro com saudade das madrugadas empregadas na leitura… os implacáveis ponteiros do relógio a se aproximarem da hora em que deveria despertar para ir ao colégio… e ainda não havia dormido!

Embora vez por outra eu me permita a releitura de um desses romances, nunca mais terei o prazer da leitura inaugural, marcada pela investigação, pela suspeita e pela antecipação da identidade do(a) assassino(a) que, revelada, sempre provocava deleite: ou pela confirmação de um palpite ou pela surpresa do inesperado.

Os leitores de Agatha Christie sabem bem do que estou falando… É possível, contudo, que alguns desconheçam que a escritora inglesa, sob o pseudônimo Mary Westmacott, explorou outros gêneros de escrita, como é o caso deste Ausência na primavera, que só recentemente tive oportunidade de ler.

 

Ausência na primavera / Mary Westmacott (Agatha Christie); tradução de Jorge Ritter. Porto Alegre, RS: L&PM, 2017, 213p.

 

Publicado no Brasil pela L&PM (2017), Ausência na primavera tem poucos personagens e um enredo bastante simples: ao voltar de Badgá, onde estivera em visita a uma filha, um imprevisto deixa Joan Scudamore presa em uma estação ferroviária em pleno deserto. A solidão do lugar e o tempo de ócio, a ser preenchido até poder seguir viagem, obrigam Joan a refletir sobre a própria vida, seu casamento e as escolhas que fizera até ali. “Teria ela sido tão feliz assim?”, indaga a sinopse da editora.

Pouco antes do referido imprevisto, a personagem se encontrara, por acaso, com Blanche Haggard, uma antiga colega de colégio, de reputação questionável, e o breve diálogo estabelecido entre elas pode ser considerado o gatilho que dispara os questionamentos de Joan na solidão do deserto.

A espirituosa Blanche, com apenas algumas frases que lhe escaparam sem maldade, demonstra saber mais sobre a vida de Bárbara, a filha que Joan estivera visitando, que a própria Joan e a partir da mera sugestão de que as coisas não eram exatamente como pareciam ser, se desencadeiam as incursões interiores que a bem sucedida e conservada esposa de Rodney Scudamore irá realizar enquanto precisa permanecer no deserto.

Ali, longe de tudo e de todos, sua vida perfeita e invejável – seu casamento feliz com Rodney, sua posição social, seus filhos educados nos melhores colégios e bem encaminhados – é vista sob nova perspectiva (culpa do sol do deserto?) e situações até então ignoradas vêm à tona e se impõem à reflexão da feliz/infeliz (?) Joan.

Embora os eventos exteriores sejam tão reduzidos quanto à mobilidade da personagem enquanto não chega o trem que a levará de volta à Inglaterra, inúmeros flashbacks movimentam a narrativa que flui com facilidade envolvendo o leitor na teia de pensamentos da protagonista.

O clima é de tensão quando, de volta ao lar, Joan precisa decidir se a verdade está naquilo que ela acreditava antes daquela viagem ou se nos pensamentos que a obsediaram em sua solidão no deserto.

Agatha Christie revela que Ausência na primavera é “o livro que sempre quis escrever” e confesso que se trata de um dos mais interessantes que tenho lido ultimamente em virtude da dissecação da interioridade da personagem principal.

A despeito de seu orgulho e temperamento controlador, Joan atrai o interesse do leitor quando precisa confrontar a própria realidade, algo que, em um ou outro momento da vida,  todos nós somos levados a fazer. 

 

 

A Autora e a capa da obra em inglês

 

 

 

Beijo&Carinho,

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Crédito da imagem em destaque, aqui.

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