SOBRE A INTERTEXTUALIDADE

A intertextualidade consiste na inter-relação – ou “diálogo” – que se estabelece entre dois ou mais textos, que não precisam ser necessariamente de um mesmo gênero.

 

 

 

A releitura que Maurício de Souza faz da obra Rosa e Azul, de Pierre-Auguste Renoir, é um exemplo de que a intertextualidade acontece com “textos” diversos, não necessariamente construídos com palavras.  Um poema que girasse em torno da situação flagrada pelo pintor francês seria um exemplo de que a intertextualidade pode, sem preconceitos, misturar gêneros: arte plástica e poesia.

Usei propositalmente a expressão “diálogo” porque a intertextualidade é mesmo uma espécie de conversa entre textos. Quanto mais culta for uma pessoa, quanto mais houver viajado e conhecido outros lugares e países, quanto mais conhecer música e cinema, artes plásticas e artesanato, quanto mais tiver lido a literatura de seu país e a de outros países, mais apta estará a compreender o mundo que a cerca.

A maior parte das notícias veicula referências a textos formadores de uma cultura – os chamados textos clássicos.  Assim, diante de uma conjuntura sócio-político-econômica complicada, um jornal pode, por exemplo, usar como título de uma matéria o famoso verso de Carlos Drummond de Andrade: “E agora, José?”. Este mesmo verso pode ser utilizado em inúmeras outras situações da vida cotidiana e pessoal de um indivíduo que é demitido, por exemplo, que perdeu um amor, que não sabe o que fazer da vida.

Ao nos referirmos conscientemente a um texto conhecido e importante, estamos fazendo intertextualidade. Ao lermos um texto e identificarmos que ele se baseou em outro texto conhecido, estamos reconhecendo um intertexto e, assim, ampliando o significado deste segundo texto. Explico com um exemplo. Adélia Prado, poetisa mineira contemporânea, escreveu:

 

Quando nasci um anjo esbelto,

desses que tocam trombeta, anunciou:

 vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher,

esta espécie ainda envergonhada.

 

Estes versos são o princípio de um poema chamado “Com licença poética”, que se encerra assim: “Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. / Mulher é desdobrável. Eu sou.”

Se você não conhece o poema de Carlos Drummond de Andrade, a partir do qual foi escrito o poema de Adélia, pode até interpretar os versos da poetisa mineira como um canto feminista, que valoriza a força da mulher que, embora delicada, é capaz de carregar bandeira e se desdobrar em muitas. Entretanto, se você sabe que muito antes de Adélia, Carlos Drummond escreveu o “Poema de sete faces”, sua compreensão dos versos de Adélia certamente irá se ampliar muito. Diz Drummond:

 

Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos, ser gauche* na vida.

 

Ora, a partir desse conhecimento, é possível entender que os versos de Adélia surgem como oposição ao que os de Drummond disseram, como uma espécie de tradução, para o feminino, daquilo que o escritor modernista escreveu: o anjo que aparece no poema de Drummond é “torto” e “vive nas sombras” (nitidamente um anjo mau, que vem amaldiçoar o sujeito para que seja tímido e desajeitado na vida), ao passo que o anjo dos versos de Adélia é “esbelto” e “toca trombeta” (visão de um anjo do bem, que anuncia um destino, não uma maldição). Assim, se você conhece o poema de Drummond, pode entender de modo muito mais amplo o apelo feminista de Adélia. E não só isso, pois o que ela faz em todo o poema (deixarei um link para que você possa ler o poema na íntegra) é defender uma nova plataforma poética – herdeira de Drummond, sim, mas jamais condicionada a ele. O título do poema de Adélia, diante dessas considerações, pode agora ser entendido: “Com licença poética”, Drummond… vou parodiar seu poema. Percebe?

Você pode estar se perguntando se isso que Adélia Prado fez não é plágio, uma copiazinha adaptada do poema de Drummond. Não, não é. O plágio faz de tudo para se ocultar, para que ninguém perceba que ele existe. O intertexto (as paródias são intertextos), ao contrário, faz questão de ser reconhecido como tal.

O texto mais parodiado da história de nossa literatura talvez seja “A Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, no qual o poeta, estudante em Portugal, sente saudades do Brasil e compõe um poema cheio de e . Lá é o Brasil, de onde está ausente o poeta; cá é Portugal, onde ele se encontra:

 

Minha terra tem palmeiras

Onde canta o sabiá.

As aves que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.

 

Quando no Modernismo brasileiro, Oswald de Andrade escreve “Minha terra tem palmares,/ onde gorjeia o mar”, parece querer lembrar ao poeta romântico, Gonçalves Dias, que este, mergulhado em seu saudosismo ufanista, que só conseguia enxergar as belezas da terra (palmeiras), se esqueceu de mencionar o grave problema da escravidão (palmares) que marcou os dias de sua existência. Muito tempo depois de abolida a escravidão no Brasil é que Oswald, com seu “Canto de regresso à pátria”, põe o dedo na ferida e afirma que, apesar das mazelas de sua terra, ele a ama: “Minha terra tem mais ouro/ Minha terra tem mais terra(…) Eu quero tudo de lá”.

Assim como Oswald de Andrade, inúmeros outros escritores fizeram questão de criar novos textos a partir dos conhecidos versos de Gonçalves Dias (Leia aqui o artigo que escrevi sobre essas paródias).

Conhecer o texto original, bem como o contexto em que foi gestado, assim como entender as circunstâncias em que surgiu uma paródia a propósito do texto anterior, sempre irá ampliar o conhecimento de mundo que ambos os poemas oferecem. Ser capaz de perceber essas correlações, facilita a compreensão dos textos que a vida nos oferece nos seriados, no cinema, nos jornais, nas provas, nos concursos… Por outro lado, ser capaz de estabelecer essas relações num texto que você cria (uma redação de concurso ou do ENEM ou ENADE, por exemplo), pode ser a linha de corte que o colocará aonde você quer e merece estar.

 

Beijo&Carinho,

 

.

 

* Gauche é uma palavra francesa <a pronúncia é gôche> que significa canhoto, desajeitado, torto – tal qual o anjo que aparece no momento do nascimento.

Crédito da imagem em destaque, aqui.

 

 

 

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