ASSIM ERA MEU PAI

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Meu pai era um homem habilidoso, capaz de criar botões de madeira e miniaturas perfeitas de taças, jarras e tachos. No quintal da minha infância havia uma limeira na qual ele amarrou um balanço, que ele mesmo construíra, em madeira e ferro, e de suas mãos saiu também uma gangorra que alegrou muitas tardes desse tempo antigo. Ele amava crianças e me lembro de que cantava para mim, com notas desafinadas, a música “Cabecinha no ombro”, de Paulo Borges, gravada por incontáveis cantores da nossa MPB.
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Eu era bem pequena; teria, talvez, uns três, quatro anos, e minhas mágoas eram provocadas pelo ciúme que sentia do meu irmão, dois anos mais novo, por causa das atenções que minha mãe lhe dava, e pelas dores que sentia nas pernas – um prenúncio, talvez, do que anos mais tarde viraria artrite reumatoide. O fato é que não havia como dormir com tanta dor e meu pai sentava-se ao meu lado na cama e ia massageando minhas pernas até que os lugares onde havia dor ficavam quentes e eu adormecia.

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Aos sábados ele ia bem cedo ao mercado e da cesta saía sempre, além do verde esperado, um embrulhinho quente de pastel. Além disso, havia um casaco escuro em seu armário, acho que nunca usado, que servia como esconderijo para balas que, em horas em que seria difícil obtê-las, apareciam do nada. Todas as crianças da família o amavam e o procuravam para que ele fizesse dengo-dengo, uma brincadeira em que eram balançadas por ele, pelos sovacos, da direita para esquerda, da esquerda para a direita. Normalmente a criança era colocada ao chão e imediatamente posicionava o corpo para uma nova rodada. Os adultos e as crianças maiores, ao redor, caiam na risada.
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Muito mais tarde, quando, profundamente infeliz, eu tentava manter meu casamento, ele foi o primeiro a me dizer que não valia a pena insistir em viver com alguém que, apesar de ser a pessoa generosa e bacana que era, não me entendia e não se importava com o que era importante para mim. Foi ele também que, quando eu estava concluindo o mestrado, incentivou-me a chegar ao doutoramento.
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Anos depois, quando eu estava de mudança para Portugal a fim de realizar um pós-doutoramento na Universidade de Lisboa, ele já não disse nada. Estava distraído, esquecido, mergulhado nas lembranças mais remotas, enquanto o presente e a identidade de todos que o rodeavam, e a sua própria, perdiam os contornos no nevoeiro do Alzheimer. Foi por causa do avanço da doença dele, no período em que estive fora, e do desconsolo em que se encontrava minha mãe, que precisei voltar.
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Há anos na cama, já sem andar e totalmente dependente, sua mão esquerda está quase atrofiada pelo desuso, o que parece uma grande ironia se se pensa no homem habilidoso que foi ele. Difícil imaginar o mundo nebuloso que ele habita; apesar da atmosfera comum da casa que ele desenhou e fez construir, não a reconhece como dele nos dias em que o passado predomina, embora noutros dias chegue a me chamar pelo nome. No dia 16 ele completa 82 anos, mas fica irritado quando se fala nisso, pois acredita que nunca chegamos ao ano 2000 e que ele não tem mais que sessenta e poucos anos. “Eu sou de 1932”, diz ele, orgulhoso de sua memória antiga.
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Eu lhe dou os remédios todas as noites e sinto que de algum modo vivemos invertidos papéis. Embora sua dieta atual consista em alimentos pastosos, não é raro que eu lhe agrade  com pedacinhos de empadas, salaminhos e chocolates em pequenos quadradinhos. De certa forma devolvo o carinho dos doces de abóbora em formato de coração que ele trazia de alguma venda, no horário do almoço, e os pastéis da minha mais antiga infância. Ajeito-lhe os travesseiros e prometo voltar na manhã seguinte, mas a verdade é que eu sei que os amanhãs, como os grãos de areia na ampulheta, não duram para sempre.
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 Beijo&Carinho,
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Observação: As imagens que ilustram este post são autorretratos de William Utermohlen (1933-2007), pintor norte-americano que ao ser diagnosticado com a doença de Alzheimer passou a pintar a si mesmo como forma de tentar compreender o desenrolar da doença. O projeto durou oito anos e as telas desse período registram o declínio de suas habilidades motoras e perceptivas, bem como os aspectos emocionais associados com a perda de sua realidade, o que tem ajudado médicos e psicólogos a entenderem melhor a doença. Para saber mais e/ou ver mais autorretratos, acesse o site oficial do artista aqui.

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Respostas de 40

  1. Jussara, que lindo amor entre pai e filha…chorei…quanta delicadeza e carinho em suas palavras. Gostei também de saber um pouquinho mais sobre você.
    Sinto muito por ele estar agora nessas condições, imagino como deve ser difícil.
    Você teve a bênção de um pai amoroso, de quem tem belas lembranças; mas eu não tive essa sorte. Embora hoje eu tenha compreendido e perdoado meu pai, que já é falecido, minha infância foi um verdadeiro teste de sobrevivência.
    Fiquei impressionada com as pinturas! Não conhecia esse artista, um gênio, ele retratou a desintegração interna, nossa!
    Que bela homenagem!
    Bjs e bom final de semana

  2. Emocionante,Jussara! Tão triste assistir o declínio de forças e mental das pessoas que amamos! Lindo texto, tocante! Sei bem essa da idade. Minha mãe parou nos 72 anos(tem 87) e esqueceu que tinha um marido. Hoje vim de lá e ela acredita que o fisioterapeuta é seu namorado. Difícil de ver.Horas de lucidez, outras de nada e até loucuras…

    Um beijo especial ao teu pai e outro pra ti! chica

  3. Olá Jussara relato triste mas ao mesmo tempo conforta aqueles
    que passam por algum tipo de situação com seus pais.
    Meus pais já tem uma certa idade e com ela muitos problemas de saúde e estes dias
    me peguei pensando…como alguém tão ativo pode ficar desse jeito.
    A velhice é algo que me incomoda muito; sempre procuro ver tudo belo lado bom…
    Mas me incomoda. Talvez seja por isso que faço mil coisas ao mesmo tempo.
    Pois o tempo passa para todos.
    Bom final de semana
    janicce.

  4. Bom que o seu pai tem uma filha amorosa e dedicada como você. O Alzheimer é uma doença das mais cruéis. Tenho uma irmã com esse mal, talvez em estágio pior que o seu pai. Às vezes me sinto um estranho perto dela ou ela é que me sente estranho. É triste! O seu pai foi uma pessoa incrível, pelo que o seu texto relata. No que se refere a crianças, tento ser um pouco como ele. Abraços, Jussara.

  5. Adoro o jeito como vc escreve. E dessa vez então me identifiquei tanto vc nem imagina. Também tenho artrite reumatoide e de pequena tive muitas dores e febre reumática. Os auto retratos são impressionantes mas ao menos lança esperança na busca do entendimento dessa doença. Minha avô teve e já perdemos também uma irmã do meu pai. Sei bem a dureza que é e o desgaste que causa numa familia. Sinto muito pelo seu pai. Só muito amor e carinho mesmo. Bjus

  6. Jussara querida, comovente o seu texto que criou uma sólida ponte entre nós, pelo menos para mim, que me sinto ligada à tua realidade. Vivi o mesmo, com a minha mãe querida, de quem serei eterna órfã.
    Chega!
    Ou começarei a chorar.
    Um beijo.

  7. Vale a pena ler….
    Nesse Domingo comemora o dia dos pais
    muitos como eu já não tem mais
    a alegria da presença física de pai.
    Por isso de alguma forma nesse dia
    procuro estar feliz da forma
    que meu pai sempre gostou.
    Com certeza ficaria muito chateado
    se pudesse me ver chorar nesse dia.
    Guardo na memoria um pai que
    mesmo sendo bravo a moda antiga.
    Fui muito amada..
    recordo com infinita saudades
    quando brincava passando em meu rosto,
    a barba por fazer.
    Do almoço Domingueiro onde
    minha mãe fazia a pasta
    deliciosa que ela fazia.
    Um abençoado final de semana.
    Feliz dia dos pais independente
    da Circunstância.
    Beijos no coração carinhos na alma.
    Evanir.
    Deixei mimo na postagem como
    lembrança desse dia.
    Li carinhosamente sua postagem descobri um anjo de filha ,
    pois é muito , mais muito difícil nos dias de hoje ter uma filha
    com o coração de anjo.

  8. Olá!
    Fui às lágrimas ao ler seu texto, emocionante e um pouco triste, por conta da doença…mas você teve oportunidade de conviver com ele por muito tempo, o meu foi embora há 36 anos, num atropelamento, não tive tempo nem de ser grata.
    Feliz dia dos pais!
    Grande abraço

  9. Fiquei atónito com esta leitura. De facto, texto muito puro, maravilhoso e de grande gratidão, algo que falta a muita gente. Sim tratando-se de um pai pode parecer normal. Mas a forma como a descrição é feita revela-se muito para além do que se escreve; e eu consigo ver isso tudo, esse amor que está muito para além das palavras que são ditas. Parabéns.

    Como eu gostaria de amanhã que minhas duas filhas olhassem para mim com esta ternura e carinho que a Jussara revela.

  10. Jussara, querida, que emoção ler seu texto… Muito triste qdo chega o quase fim, mas alegre qdo se tem orgulho e lembranças maravilhosas de uma vida com afeto e carinho. Um beijo bem carinhoso no seu pai e outro em vc!

  11. Olá Jussara,

    O histórico da doença do seu pai me remeteu ao quadro clínico do meu pai, que passou os últimos sete anos de sua vida na cama, vítima também do Alzheimer, e cujo estado foi agravado em virtude de uma queda que o impossibilitou de voltar a andar, pois fraturou o fêmur e não tinha como reaprender a andar. O próprio fisioterapeuta me avisou que qualquer tratamento seria inútil.
    Você homenageou seu pai com um texto que me emocionou e também me proporcionou conhecer um pouco mais de você.
    Lindo seu amor e carinho por ele.

    Interessante o trabalho da ilustração, mostrando o declínio das habilidades do pintor.

    Feliz semana.

    Beijo.

  12. Que lindo retorno de uma filha carinhosa, para com o seu pai doente. Um pequeno gesto, para dar um pouco mais de doçura aos dias que se arrastam. Eu não tive essa figura paterna, querida e orientadora, na minha vida. Vc tem muita sorte.
    Não sabia que esteve em Lisboa a morar. Daí o fascínio pela Florbela Espanca?
    Muitos beijinhos, uma doce semana
    Ruthia d'O Berço do Mundo

  13. Oi Jussara, teu depoimento é emocionante. Quisera eu ter tido um pai que tivesse me deixado lembranças como essas no decorrer da vida. O que ele deixou como lembranças prefiro esquecer. Há pais e outros. O teu foi um verdadeiro pai. Felizes os que puderam usufruir. Bjs
    Joana

  14. Fico feliz por tê-la encontrado! Sua sensibilidade me encantou! Parabenizo-a, também, por possuir tão lindas lembranças e pela infância com tanto amor! Pense que é uma pessoa abençoada, apesar do sofrimento de agora. Pelo menos está tendo oportunidade de retribuir ao cuidar de seu pai. Desejo-lhe muita força.
    Aceite meu abraço,
    Lécia Freitas

  15. Um texto emocionante e que tem amor em cada letra, em cada pontuação. Imagino a sua dor ao escrevê-lo porque reviver estes momentos – de alegria e tristeza – marcam a nossa alma. Transbordam as lágrimas. E antecipam a saudade.

  16. Uma bela (e melancólica) descrição de uma paternidade vivida com amor e generosidade.
    Que Deus e o acaso abençoem vocês ao longo desta história, nas páginas felizes e tristes que os (des)caminhos da vida escreve.

    Seja na paternidade (dele), na maternidade (agora sua) e na "filhidade" (de ambos em diferentes momentos), o que os une é carinho e respeito.
    Boas heranças geram riquezas que se multiplicam com o tempo!

  17. Não sei se fico triste ou feliz Ju…
    É triste ver quem amamos morrendo aos poucos, mas por outro lado vc ainda tem seu pai presente.
    O meu se foi tão cedo…tão jovem…39 anos ele tinha e um vida toda pela frente.
    São 23 anos de ausência e poucas lembranças…

    Um beijo carinhoso, e força

  18. Ai Ju, chorei daqui… primeiro porque meu pai se foi quando eu tinha cinco anos, então nada de lembranças… somente coisas que me contam daí eu tenho lembranças…

    Mas imagino o quanto deve ser difícil enfrentar essa situação…
    O post está tão lindo…que fiquei sem palavras !!

    Bjus 1000 minha querida

  19. Oi JUssara
    Já escrevi sobre o meu pai certa vez e não foi fácil, imagino o quanto doeu ter de se render ao fato que os dias pra ele já não são mais os mesmos.O meu já fez a passagem que todos faremos ,um dia.
    A vida nos reserva alegrias e em contraponto esse lado triste. É bonito o texto, embora um tanto triste. pelos finais que remetem a perda solidão .
    Obrigada por compartilhar sua escrita tão pessoal e nos fazer refletir sobre a fragilidade da vida.
    Obrigada pela visita simpática.
    deixo abraços e volto,

  20. Mais um final de
    não percebemos o quanto o tempo tem passado rápido
    em nossa vidas…
    Vale lembrar que o tempo não passa por
    nós ,e sim nós que passamos por ele ..Tal a correria da nossa vida
    das nos a Sensação que o tempo voa.
    A dura realidade é que nunca paramos
    para saber se alguém chora precisando de uma palavra de carinho.
    Sinto isso na carne a cada amanhecer a falta
    de afeto a simplicidade de um afago acariciando a alma.
    Elevo meu pensamento a Deus no infinito
    sinto uma lagrima rolar ao sentir que o Pai
    nunca se afasta de mim .
    Nunca me deixa sozinha.
    Numa prece silenciosa rogo
    a Deus por dias menos dolorosos .
    Para todas as dores do mundo
    incluindo a minha também.
    Meu amor e carinho para você.
    Um final de semana abençoado.
    Leve meus beijos na alma
    e meu carinho no coração.
    Evanir.

  21. Sensibilidade, carinho e admiração encontrei nesta linda declaração de amor ao seu pai…Certeza plena de que é uma benção, poder cuidar dele, como cuidou de você…Lindo texto, me emocionou!
    Beijinhos, Ana

  22. Boa tarde amiga Jussara! ♡
    Não há como não se emocionar ao ler esse depoimento sobre seu amado pai. ..e a vida sempre nos surpreende. ..
    Que tenhas muita saúde para continuar a cuidar de seus pais.
    Deus abençoe sempre vocês! ♡
    Bjokas da Bia! ♡

  23. Jussara, querida

    Como já disse uma vez, não gosto muito de ler.

    Mais os seus textos, consigo ler sem o menor problema, porque nos prende a atenção.

    Esse sobre seu pai e sua infância, eu achei lindo e emocionante

    beijo carinhoso

    Regina Célia

  24. Jussara,
    sempre gosto muito de ler o que escreve, mas esse texto sobre seu pai me comoveu tanto! Eu tive um pai assim, carinhoso, presente … Já casada ainda me sentava no colo dele. Já minha mãe passou os 4 últimos anos de vida com essa doença terrível (Alzheimer) e tornou-se uma criança. Estive com ela até o fim, mas … será que fui assim tão devotada como você é? Lindo texto, cheio de ternura e coração. beijos.

  25. Jussara , me comovi bastante com seu texto . A doçura de suas palavras descrevendo seu pai espelham a filha que é . Perdi o meu ,há dois anos , por conta de sua insuficiência renal , depois de quatro anos de hemodiálise , três vezes por semana . Acompanhá-lo nas sessões feitas no hospital me mostrou o que é ter reverência pela vida .
    A saudade dele me dói demais . Beijos ao seu pai e parabéns a você .

  26. Jussa, retorno aqui depois de um intervalo de tempo que eu deixei esquecido na memória e que não me pareceu tão longo. Tão logo voltei, vi-me diante de um texto no qual é mostrado a fragilidade humana e o amor incondicional. Hoje você retribui os zelos e desvelos que seu pai, perdido dentro de uma lembrança só dele, outrora lhe oferecia. As suas memórias frescas de infância, a bordo do esquecimento pelo qual passa o seu pai, nos emociona.
    Bj – Sidnei São Pedro

    1. Este mês completaram-se três anos de ausência de meu pai… A saudade me fez colocar o texto em destaque. Obrigada, AC, pelo carinho. Abraço!

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