“QUANDO” – PEQUENO ESTUDO DO POEMA DE SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

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A reflexão sobre a brevidade da vida humana marca o seguinte poema, publicado em 1947 pela portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen:
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A opção da autora pelo tempo verbal que marca o primeiro verso ali mesmo situa o que é dito em um tempo diferente daquele em que se diz.  Todas as considerações tecidas após esse verso referem-se a um momento posterior à morte do eu-lírico, o que equivale a dizer que não é um futuro pessoal o que ele antevê, mas, sim, o futuro das coisas que no presente o cercam e que permanecerão após a completa desintegração do seu ser.
Logo no segundo verso, e em oposição à negatividade semântica do verbo apodrecer, surgem as imagens positivas do jardim, do céu e do mar, que constituem o presente do eu-lírico (“hoje”) e que continuarão a existir mesmo sem a sua presença. Ainda em oposição à imagem da morte o poema apresenta o “brilho” e a “festa” das estações, da primavera (“Abril”), do pomar, da floresta de “cabelos doirados”. Substituindo o eu-lírico, já extinto, “outros (…) passarão no pomar” e “amarão” as coisas antes por ele amadas, como os “longos poentes sobre o mar”.

 

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Via.

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Embora a autora pudesse empregar o tempo presente nos verbos do sexto e do oitavo versos, uma vez que no momento em que enuncia o eu-lírico passa pelo pomar e ama as coisas que o cercam, a escolha do passado (“tantas vezes passei”, “coisas que eu amei”) sugere que de tal modo o eu-lírico se integra em sua visão do futuro que percebe as coisas que o rodeiam como se delas se despedisse, como se ele mesmo quase já não se percebesse ao fitá-las. Ao mesmo tempo, a afirmação de que no passado o eu-lírico passou pelo pomar e amou essas coisas indica que tais coisas (pomar, jardim, poentes e mar) já faziam parte da vida do eu-lírico em um momento anterior aquele em que se exprime. Esta última consideração certamente amplia, aos olhos do leitor, o valor que para o eu-lírico têm as coisas as quais se refere, uma vez que elas aparecem quase como constituintes de sua personalidade e, portanto, como essenciais ao seu ser. Contudo, por mais que precise do jardim à sua porta, do céu e do mar, por mais que eles ajudem a compor a sua existência, é grande a consciência do eu-lírico de que essa natureza tem uma existência exterior à sua e que continuará a existir quando ele já não for.

A repetição na última estrofe reforça a ideia de que tudo permanecerá absolutamente igual, o que mais uma vez indica a percepção do eu-lírico de que a natureza continuará a existir após a sua morte: “Será o mesmo… Será o mesmo…”. Indica, ainda, junto do último verso, uma espécie de espanto do eu-lírico, nascido da constatação de que as coisas intensamente amadas continuarão a existir como se ele ali ainda estivesse: “Como se eu não estivesse morta”. Esse sutil espanto, no entanto, se dissolve em meio às palavras “brilho”, “festa” e  doirados”, que dão a medida da discreta alegria da voz poética ao constatar a permanência das coisas amadas.

Parece fácil ao eu-lírico a constatação da própria finitude, mas a serenidade com que ele a encara, revelada até pelo ritmo do poema, nasce de um desprendimento da vida possível apenas pela certeza da vivência plena do presente e pela convicção de que a permanência da Natureza, por opor-se à brevidade da vida humana, será referência para o homem de qualquer tempo, nítido sinal de um absoluto que nos transcende e nos convence de nossa pequenez..

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O itinerário poético de Sophia esboça-se com nitidez desde a publicação de Poesia, em 1944. Ali – e nas obras que imediatamente lhe seguiram – os temas de Sophia já apontavam para um renascimento resultante de um retorno à pureza inicial das coisas, o que continuou a ser feito de um modo cada vez mais claro nas obras mais recentes. É possível que as destruições materiais e morais que a Segunda Grande Guerra trouxe ao mundo, bem como a desolação que tomou Portugal ao longo da ditadura tenham provocado na poetisa a urgência de redescobrir a vida em sua essência, subvertendo o caos a que chegou o mundo moderno e no qual se via inserida. É redentor, portanto, desde o início, o caráter que assumem os versos de Sophia.  Se já não são absolutos os valores sociais, torna-se necessário empreender uma busca do estável, do eterno, do incorruptível.

Nesse jogo entre o eterno e o mutável a escritora volta-se para a natureza, procurando, através da palavra poética, re-ligar o homem aos elementos que antecedem sua presença no mundo. Assim é que o mar, a terra e o sol, nomeados poeticamente, aparecem como caminhos para o reencontro do homem consigo mesmo e com o seu verdadeiro lugar no mundo. 

A obra poética que Sophia nos legou é das mais importantes de toda a Literatura Portuguesa e a dignidade de tom e dicção dessa poética só tem paralelo, segundo já disseram, na própria dignidade que marcou a vida de Sophia como escritora, como cidadã e como mulher.

Sophia nasceu no Porto em 1919 e faleceu em Lisboa em 2004.

 

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Estátua de Sophia no Parque dos Poetas, em Oeiras, Portugal
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Sophia e eu
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Beijo&Carinho,
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MAIS PUBLICAÇÕES

Respostas de 37

  1. Antes de mais adorei vê-la junto de Sophia no Parque dos Poetas!..:-)
    Sophia de Mello Breyner era visita constante da cidade onde eu moro, Lagos, Algarve, porque aqui tinha uma casa de férias. Uma colega de escola há muitos anos atrás, disse-me que ela era a sua madrinha, e que por isso ela se chamava também Sofia. Eu na altura já familiarizada com a sua poesia fiquei maravilhada, coisa que a afilhada nem parecia conhecer…:-)
    Quanto ao se esplêndido texto tão bem escrito, nada a assinalar a não ser que é digno de aplausos numa blogosfera que parece andar perdida em unhas de gel e vestuário que está ou não está na moda.
    Posso estar errada, mas parece-me que esse poema "Quando" foi escrito em 1947,embora aparecendo numa compilação poética da autora em 1998, o que poderá induzir em erro algum dos seus leitores… O que quero dizer com isto, querida
    Jussara, é que para além da grande, competente e maravilhosa explanação que você fez, a idade relativamente jovem em que o poema foi escrito diz muito mais acerca desta mulher do que se tivesse sido escrito perto do fim da vida.
    Adorei o seu post , Jussara! Bem haja por mostrar o que vale a pena!
    xx

    1. Obrigada, Laura, querida, pelo comentário carinhoso e pela advertência sobre a data da publicação do poema. De fato, 1947. 1998 é a data da edição que possuo. Já fiz uma pequena alteração na introdução do texto para que meus leitores não se enganem. Você tem toda razão, faz toda diferença saber que quando o poema foi publicado a escritora tinha apenas 28 anos.
      Abraço!

  2. Olá Jussara,

    lindo poema! Por ver que tudo permanece igual quando a gente morre, que a natureza não se abala, achei triste, melancólico!
    Linda a foto com"ela", eu não conhecia a escritora, obrigada por apresentar-me.

    Beijão,
    Lu

  3. é lindo demais.
    Longe de mim querer me comparar a escritora, mas já me peguei pensando assim… num pomar de jabuticabeiras cheio de folhas secas pelo chão.
    se conhecer é verdadeiramente tão vital… se reencontrar para se enxergar
    A morte faz parte da vida… temos que dar lugar.
    bjus muitos. Elaine

  4. Lindo poema Jussara! Me fez lembrar o quão frágil somos, e o quanto a vida se desgasta a cada instante. O poema se apresenta com força mas ao mesmo tempo imprime leveza e doçura ao retratar as belezas e riquezas do cotidiano diante a brevidade da vida, e do quanto somos pequeninos diante dela. E isso estimulou minha emoção, fiquei muito tocada. As vezes vivemos em um mundo tão à parte, que nem nos atentamos para esses detalhes tão significativos de nosso cotidiano. Ela define de forma simples e agradável, usando de elementos de seu dia a dia para nos lembrar que, muitas vezes só nos reencontramos com a vida, quando ela já está nos faltando. Seu poema veio como um convite. Primeiro a senti-lo, para depois pensá-lo. Foi um caminho confortável para refletir sobre algumas questões bem complexas: A solidão diante da vida, a angústia diante do belo, e o temor de entregar-se ao desconhecido. A poesia me fez refletir…

    Beijo querida e um ótimo final de semana
    Denise – dojeitode.blogspot.com

  5. Oi, Jussara!
    Acho que nunca li uma análise tão perfeita de um poema de Sophia de Mello Breyner. O gostoso foi constatar que tudo o que havia percebido ao ler o poema – sem a sua técnica de análise – fui comprovando enquanto lia a sua análise. E depois a surpresa da foto 🙂 Que delícia!
    Sophia de Mello Breyner Andresen é talvez a poetisa mais citada no "Luz". Adoro!!
    Bom fim de semana!!
    Beijus,

  6. E você diz que nunca bordará usando uma maquina de costura… Minha Amiga, você borda com palavras, você usa os fios urdidos pela sua alma e também os de outros tecelões de poemas e textos. Não se preocupe com a máquina, continue musicando as almas dos que sentamos em frente a uma maquina de costura/bordado para, assim, nos inspirar.
    Um abraço e bom fim de semana!
    Egléa

  7. Oi Jussara,
    É um poema lindo mesmo.
    Pelo que escreveu, ela descobriu de um modo triste que a vida tem que ser vivida na plenitude máxima .
    Só nós que vamos embora…É poema para todos o dias!
    Tirando o lado poético, é uma pena que essa certeza da 'permanência da Natureza' esteja tão abalada.
    Lindo post…aula!
    Adorei a foto!

    bjs
    Ótimo finde também!

    Obrigada!!!
    As fotos sempre me 'estressam' rs

  8. BOM DIA, COLEGA JUSSARA!
    QUE LINDO POEMA. REALMENTE, CHEIO DE SENTIMENTO. PORÉM, FIQUEI INTRIGADA… POR QUE SERÁ QUE A AUTORA ESCREVEU "HÃO-DE", NO INÍCIO DO POEMA? NÃO ENTENDI O EMPREGO DESSE HÍFEN… MISTÉÉÉÉRIO! KKK
    VENHAM VISITAR-ME, MOÇA!
    PASSE EM "GAM DOLLS (2)", QUANDO PUDER. POSTEI ARTESANATO NOVO.
    TENHA UM LINDO SÁBADO E UM ÓTIMO FINAL DE SEMANA.
    ABRAÇÃO PRA VOCÊ! 🙂

  9. Oi, Ju,

    Eu não conhecia esta poeta, Sophia de Mello Breyner, obrigada pela indicação! rsrs. Gostei demais da análise feita, preciso dizer? rsrs.
    O interessante é que ainda ontem conversei com o meu marido sobre o nosso passamento (falávamos sobre o medo – ou não – da morte) e eu afirmava (o óbvio) que depois que nos formos tudo continuará igual, rsrs. Très chic você na foto com a poeta, rsrs.

    Um beijo, bom domingo e boa semana, querida!

  10. Querida Jussara, estranho mundo este em que compreendo melhor uma poetisa e compatriota graças a uma amiga virtual, que mora do outro lado do Atlântico.
    Gostei muito desta sua desconstrução da Sophia, cujo trabalho honra todos os portugueses.
    Beijinho
    Ruthia d'O Berço do Mundo

  11. Querida Jussara, Sophia fazia parte do curriculum dos alunos de humanidades, 12º ano, pré universitário.
    Para mim, é A POETISA!
    Passei apertos, quando de voz embargada, e lágrimas prontas a saltar, abordava este e outro poema, perante uma sala repleta de jovens adultos!
    Continuo a sentir um nó na garganta, um arrepio no peito!
    beijo

  12. Ju,
    Amei a aula sobre o poema. Eu nunca imaginaria isso tudo. Com tão poucas palavras e o resultado é tão profundo. Pelo visto eu não sei nada mesmo sobre poesias/poemas (sei que vc já explicou a diferença, mas não consigo lembrar!). Adoro vim aqui e aprender um pouco mais sobre o português, sobre literatura. Muito profundo mesmo essa poesia dessa portuguesa que não conhecia!
    Beijos
    Adriana

  13. Posso imaginar sua emoção em se fotografar ao lado desta poetisa,
    que você tão apresenta com toda sua cultura e historia.
    Um trabalho perfeito Jussara, que você nos oferece
    e cria a curiosidade de aprofundar.

    Uma linda semana a você com meu abraço mineiro.

  14. Boa noite Jussara.. muito grato pela sua visita.. sejas muito bem vinda sempre.. logo te seguirei… então deves estar te perguntando.. sobre os meus escritos carregados, pois é.. ele Augusto dos anjos é um idolo para mim.. adoro tudo dele.. e tento do meu jeito moldar sonetos que um mestre tb bem moldou.. ele e Cruz e sousa.. tem o seu valor assim como todos os outros.. esta que aqui deixaste desconhecia.. mas gostei muito dos escritos dela.. deixo algo que fiz a algum tempo e tem para muitos outros, mas como citou ele a minha homenagem a ele

    AUGUSTO DOS ANJOS

    Fostes preso por uma visão… sofredora
    Descrita nos teus versos de beleza… fria…
    Tua vida coberta pela aflição… fora
    Uma vida regada em tristeza… e agonia;

    Fostes o monossílabo não… que devora
    E que devorou a pobreza… tão sombria…
    Daquela geração… para ser só agora
    Visto com tal grandeza… e com sabedoria;

    Fostes sim o vencido… O maior devorador
    De livros que acabou deixando… somente o EU…
    Este livro que deu susto… até em arcanjos;

    Fostes bem atingido… pela forte dor
    E mesmo assim manteve-se moldando… o teu
    Livro tão tristemente Ó Augusto… dos Anjos;

    uma linda noite e até sempre abração

  15. Jussara, querida

    Eu não gosto muito do assunto morte.

    Mais essa poesia reflete a verdade, isso ninguém pode negar, tudo continuará do mesmo jeito.

    Adorei as fotos, pois adoro Portugal, mesmo sem nunca ter ido. Meus avós eram portugueses.

    beijo carinhoso

    Regina Célia

  16. Olá Jussara, vim retribuir a visita e o carinho. Gosto muito da Denise, estou sempre por lá.
    Também adoro a Sophia, tenho uma coletânea de poemas dela que não me canso de reler.
    Belas fotos de Portugal.
    Também te sigo.
    Abraço
    Quanto às tinturas, vá experimentando as diferentes marcas e veja com qual se dá melhor. A Rosa, uma de nossas leitoras, disse que a Biocolor tem sempre uma tonalidade mais escura do que o indicado na embalagem. O loiro escuro, por exemplo, fica mais próximo do castanho. Ela já experimentou todas e disse que são boas.

  17. Olá Jussara,

    Lindo o poema. Não conhecia esta poetisa, mas saio daqui com material mais do que suficiente para conhecê-la melhor.
    Seu texto é espetacular e sua análise é digna de destaque. Parabéns!
    A perfeição de sua análise dispensa maiores comentários sobre o poema.
    Gostei de vê-la ao lado da Sophia na foto.

    Linda e rica postagem.

    Beijo.

  18. Obrigada por me apresentar essa maravilhosa poetisa. Belíssima análise literária, como os poetas femininos da época tinha uma visão nostálgica, acho a poesia dela parecida com as da Cecília Meireles.
    Bjos e tenha um ótimo dia.

  19. Olá, Jussara, querida amiga!

    Tudo bem?

    Tardei, mas cheguei.

    As tarefas escolares me levam todo o tempo, inclusive, parei com a publicação em meus blogs.

    Bem, o que você escreveu não foi uma abordagem, uma análise a um poema, nem à vida e obra da poetisa referida, FOI UMA TESE SUPER COMPLETA., sobre a mesma.

    Reconhecendo o mérito de Sophia, a poesia dela, em geral, nesta poetisa, não me preenche o olhar. É verdade! Não sei o porquê. Talvez, desconhecimento meu, sei lá.

    Você ficou muito bem, junto à estátua da poetisa. Então, já conhece Lisboa?

    Um resto de boa semana.

    Beijos da Luz.

  20. Em toda minha vida percorri um caminho…
    não sei se é longo ou curto,
    mas o que importa são as
    pessoas que conheci
    e marcaram meu coração.
    Na minha vida dei carinho e amor
    para aquelas pessoas especiais,
    como você que é uma pessoa
    especial minha vida.
    Deus fez o mundo, espalhou por
    ele pessoas maravilhosas,
    e nos deu a missão de encontra-las,
    cumpri a minha encontrei você.
    Um abençoado final de semana
    Deus abençoe você hoje e sempre.
    Beijos e meu eterno carinho.
    Evanir.

  21. Jussara
    Mais uma preciosa aula de literatura.
    Me encanto sempre com a fluidez dos seus escritos. A sua análise tão rica quando confrontados com os versos evidenciam ainda mais a beleza de todo poema.
    Fico a imaginar a emoção que sentiu ao ser fotografada com a estátua da poetisa.
    Adorei.
    Lindos dias para você.
    Bjs.

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